Rio de Janeiro se tornou resort do crime organizado

Atribuir responsabilidade sobre a segurança na cidade ao STF é hipocrisia

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento da ADPF 635, a chamada ADPF das Favelas, pela qual se busca a elaboração de um plano para a redução da letalidade policial no Rio de Janeiro. Para muitos, ao propor limites para o uso da força letal em operações policiais, o Supremo estaria inibindo o combate ao crime organizado. Mais do que isso, estaria invadindo competência que foi conferida aos Estados.

Embora tenham forte ressonância junto ao eleitor, ambos argumentos são equivocados.

Em primeiro lugar, o surgimento, crescimento, enraizamento e domínio do crime organizado no Rio de Janeiro, ou em outras regiões do Brasil, precede, em muito, qualquer intervenção do Supremo.

Manifestação do movimento Rio de Paz com fotos de crianças que foram mortas por bala perdida no Rio de Janeiro; as imagens foram arrancadas pouco após terem sido colocadas no local – Rio de Paz no Instagram – 28.dez.24

Se o Rio está se tornando um “resort do crime organizado”, como sugere o prefeito, isso decorre diretamente da conduta de muitas gerações de governantes que negligenciaram, por completo, o direito dos cidadãos à segurança. Atribuir responsabilidade ao Supremo é ato de hipocrisia.

Também não procede o argumento de que a intervenção do Supremo seja indevida. Embora a competência primária pela política de segurança seja do Executivo, tanto no plano estadual como no federal, cumpre ao Judiciário, quando devidamente provocado, aferir a compatibilidade de uma determinada política pública com preceitos fundamentais da Constituição. E é exatamente isso o que está ocorrendo nessa ADPF.

Ao longo de décadas, o Estado brasileiro têm sido negligente com sua obrigação constitucional de assegurar o direito fundamental de todo cidadão à segurança. Ao Estado cumpre o dever de criar leis, instituições e políticas públicas voltadas à proteção da vida, do patrimônio e da integridade física e moral dos cidadãos. Quando o Estado falha, o crime vence e o cidadão sofre. Quando falha sistematicamente, a vida de milhões de pessoas, especialmente as mais pobres, vai sendo brutalizada pelo crime.

Governantes irresponsáveis e oportunistas buscam, muitas vezes, compensar a própria incompetência incitando as polícias a fazer justiça com as próprias mãos. Não só fazem vistas grossas para o arbítrio e a violência policial como para a atuação de milícias. Essa postura pode até render votos, mas não gera segurança.

Polícias violentas e arbitrárias não combatem o crime. Ao contrário, fomentam um ciclo vicioso em que ele cresce. Não há organização criminosa sem a conivência de agentes de Estado que agem à margem da lei. É dessa relação promíscua que florescem os verdadeiros resorts do crime.

A ADPF das Favelas não resolverá o problema da criminalidade no Rio de Janeiro. Mas pode contribuir para uma melhora, de duas maneiras.

Em primeiro lugar, desestabilizando práticas ilegais que não apenas violam os direitos dos cidadãos como degradam as polícias. Ao impor limites ao uso abusivo e arbitrário da violência letal, ampliará a integridade e a confiança da população na polícia, o que é indispensável para uma política de segurança eficaz.

Em segundo lugar, abrindo uma oportunidade para que as autoridades responsáveis possam, coordenadamente, qualificar as políticas de segurança e modernizar as polícias.

É com formação, inteligência, respeito ao trabalho policial e organização institucional, e sob o império da lei, que se combate ao crime. O resto é bravata.


Oscar Vilhena Vieira – Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

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