Pessoas negras são as que mais têm suas casas violadas pelas polícias na cidade do Rio de Janeiro. Entre todos que já tiveram sua casa revistadas, negros são 79%. Os dados são de pesquisa Datafolha encomendada pelo Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania).
Segundo o levantamento, as abordagens policiais a pessoas negras superam proporcionalmente o total de negros —a soma entre pretos e pardos— na capital (55%), conforme os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A pesquisa revela que 63% dos “enquadros” policiais têm como alvo pessoas negras.
Foram ouvidos 3.500 moradores do Rio com mais de 16 anos nos dias 4, 5 e 6 de maio de 2021, em pontos de fluxo intenso de toda a cidade. Ao todo, 739 responderam o questionário completo como uma amostra representativa dos moradores que já foram abordados na cidade.
O perfil dos abordados pela polícia
A pesquisa mostra que 17% dos entrevistados foram abordados mais de dez vezes pelas polícias. Os “super parados”, segundo define o Cesec, são homens, negros, de até 40 anos, moradores de favela ou bairro da periferia e com remuneração mensal de até três salários mínimos.
“[O perfil] é o estereótipo do bandido brasileiro: negro, jovem e mora na favela.” Foi dessa forma que o advogado Vivaldo Lúcio lamentou a prisão de Yago Corrêa de Souza, 21, quando o jovem saía de uma padaria na comunidade do Jacarezinho na semana passada —ele foi solto dois dias depois após ser detido por PMs por suposto envolvimento com o tráfico de drogas.
A defesa e a família do rapaz apontam que o racismo o levou à prisão, já que apenas seu perfil o transformou em suspeito.
Para Pedro Paulo Silva, pesquisador do Cesec, o Rio vive uma “criminalização” territorial e estética.
A polícia tem o imaginário do elemento suspeito: aquele com bigodinho fininho e cabelinho ‘na régua’ que retrata a cultura negra favelada. A gente consegue ver que a partir dessa construção do elemento suspeito, a gente está criminalizando todos através da estética. Criminalizando um território
Pedro Paulo Silva, pesquisador do Cesec
Racismo nas polícias piorou nos últimos 20 anos, diz pesquisadora
A primeira edição da pesquisa foi lançada em 2003. Agora, quase 20 anos depois, o Datafolha foi às ruas para mostrar o que mudou e o que permanece igual em relação à experiência de negros com as polícias na cidade.
“Passamos por tentativas de mudanças da Polícia Militar, tentativa de reformas, como as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], tentativas de mudança dos currículos, acrescentando disciplina de Direitos Humanos e, mesmo assim, as violências não pararam”, destaca Pedro Paulo.
A cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Cesec e responsável pela primeira pesquisa, analisa como a ascensão acadêmica e econômica de parte da população negra desde 2003 — graças a políticas públicas educacionais— não foi suficiente para diminuir a suspeição em relação a negros.
A produção da imagem da guerra às drogas se intensificou, e a figura do jovem negro de favela hoje é ainda mais identificada como suspeito do que há 20 anos. A gente deu passos para trás e regrediu em termos de justiça e igualdade. A polícia hoje é mais racista do que há 20 anos
Silvia Ramos, cientista social
Em nota enviada ao UOL, a Polícia Militar negou que haja viés racial na “sua missão de combater criminosos” e que as ações “são baseadas em protocolos rígidos de atuação e preceitos técnicos de treinamento e orientação”.
A corporação ainda afirmou que a maioria dos policiais vem de classes “de base” da sociedade, o que os torna “parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam”. “Mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes”, diz a PM.
População teme a polícia, diz pesquisa
De acordo com o levantamento, negros são os que mais veem pessoas sendo agredidas por policiais (70%) e têm maior proporção de amigos negros presos ou detidos (66%).
Outro dado alarmante dá conta que 74% dos que já viram parentes ou amigos serem mortos pela polícia são negros.
Os resultados demonstram algo apontado há décadas: a polícia seleciona quem aborda por critério racial.”
Pedro Paulo Silva, pesquisador do Cesec
A pesquisa também aferiu a percepção dos jovens negros sobre a polícia. Ao responder sobre a primeira ideia que têm, quando pensam em polícia, as palavras mais comuns são violência, medo e corrupção.
Em relação à abordagem policial, repetem-se termos como injustiça, calafrio e constrangimento.
Para Pedro Paulo, esse é um dos efeitos da violência psíquica. “As pessoas negras são as que têm mais medo pois presenciam os fatos e isso causa outra dimensão de violência. A violência policial é tão profunda que a abordagem policial é apenas a ponta do iceberg.“
Ameaças e uso de arma cresceram em 20 anos
Se comparada a pesquisa de 2003 e com divulgada hoje, observa-se que as ameaças durante abordagens policiais passaram de 6,5% para 23% —um aumento de 16,5 pontos percentuais.
A experiência violenta mais comum é ter uma arma diretamente apontada para si. Em 2003, 9,7% relataram que tiveram armas apontadas contra si em abordagens policiais —na pesquisa atual, esse número salta para 28%.
O documento mostra que 4% dos entrevistados sofreram violência física; 7%, tentativa de extorsão por policiais e, em 9% dos casos, o policial pediu para ver os celulares dos abordados.
A pesquisa expõe o uso de palavras na abordagem, como: “neguinho”, “negão”, “meliante”, “elemento”, “Seu Jorge”, “Bob Marley”, “escurinho”, “favelado”, “moleque”, “ganso” (pessoa envolvida com o tráfico ou com passagem pela polícia) e “marmita” (termo pejorativo usado para se referir a mulheres que se relacionam com criminosos).