A vida não é apenas o que você faz, mas também de onde você começou. Imagine um jovem que cresceu em um bairro rico, com escolas de qualidade, desfrutando de bons contatos e amplo apoio financeiro.
Agora pense em outro que nasceu em uma família pobre, frequentou escolas ruins e está imerso em um ambiente que pouco contribui para seu desenvolvimento pessoal. Esses dois jovens podem ter os mesmos sonhos e a mesma capacidade, mas as probabilidades estão fundamentalmente a favor de um deles.
A questão é que esse tipo de vantagem não é conquistado, ele é herdado. Isso não significa que muitos daqueles que estão em uma posição favorecida não se esforçaram. No entanto, significa que eles tiveram um empurrãozinho a mais. E, enquanto chamarmos essa vantagem de “meritocracia”, estaremos negligenciando as verdadeiras forças das desigualdades que moldam nossas vidas.
Grande parte dos recursos não é distribuída com base no esforço individual. Ela é distribuída por um sistema que, por décadas e gerações, favoreceu alguns em detrimento de outros. A isso chamamos de privilégio.
Mas não me entendam mal. O mérito é importante. A ética do trabalho é importante. Contudo precisamos reconhecer que as portas do progresso nunca foram realmente abertas para os brasileiros que perderam na loteria do nascimento. Precisamos admitir que essas portas não dependem de o quão forte você bate, mas de quem segurava as chaves desde o começo.
Apesar disso, algumas vezes ouvimos histórias sobre pessoas que conseguiram superar adversidades e realizar grandes feitos. E não há dúvidas de que essas pessoas são admiráveis. Elas nos inspiram, mostrando o poder da resiliência e do esforço. No entanto, precisamos ser honestos e encarar a realidade.
A realidade é que, para cada história de sucesso que ouvimos, existem milhares que não tiveram a mesma sorte. Há milhares que deram o melhor de si e trabalharam duro, mas enfrentaram dificuldades que os deixaram pelo caminho.
Quando alguém consegue avançar, devemos celebrar. Porém também precisamos lembrar que essas pessoas são a exceção, não a regra. Quando olhamos apenas para as exceções, estamos nos enganando. E um país que se engana nunca conseguirá progredir.
Se focarmos apenas nas poucas histórias de sucesso, correremos o risco de ignorar os muitos que ficaram para trás. Estamos falando aqui de milhares de mulheres e homens talentosos, jovens cheios de sonhos, que não conseguiram alcançar seu potencial. E não foi por falta de vontade.
O verdadeiro desafio de uma nação não é produzir alguns exemplos para dizer que o sistema funciona. O desafio é reformar o sistema para que ele funcione para todos. Para que não precisemos mais nos contentar com as poucas histórias de exceção, mas possamos nos orgulhar da construção de um país onde qualquer um, independentemente do local de nascimento, tenha as mesmas chances de sucesso em suas escolhas.
O texto é uma homenagem à música “Batendo o Martelo nas Mesmas Cabeças”, interpretada por Cabruêra.
Michael França – Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford