#SalaSocial: Rúgbi, filarmônica e balé: ‘favela tem muito mais que tráfico, rapaz’

Por:Ricardo Senra

Meninos jogam futebol em campo de terra no Capão Redondo, em SP

“Violência na favela? Não, obrigado. A gente tem bem mais que tiroteio e tráfico aqui, rapaz”, diz Joildo Santos, com um olho no vaivém do centro da favela de Paraisópolis, em São Paulo, e outro na página dos moradores da comunidade no Facebook. Sua última postagem apresentava o time de rúgbi local, que está prestes a completar dez anos e tem até jogador na seleção brasileira.

“Você sabia que tem rúgbi aqui?”, pergunta o comunicador. “Também tem orquestra filarmônica, circuito gastronômico e balé com mais de cem dançarinas.”

Sem intermediários, por meio de vídeos, fotografias e relatos de moradores, ele compartilha nas redes sociais o que chama de “pauta positiva” das favelas. Para reverter a imagem ruim que por décadas foi associada às comunidades, Paraisópolis divulga cursos de formação, personagens locais, eleições comunitárias e eventos culturais, como festivais de música, poesia e dança.

“A gente opta pela perspectiva construtiva”, explica Joildo, mostrando a rádio comunitária e o jornal Espaço do Povo, fundado há 14 anos e hoje repleto de anunciantes.

Joildo Santos, no computador de onde fala com moradores de Paraisópolis, em SP

Joildo Santos, no computador de onde fala com moradores de Paraisópolis, em SP

Joildo não é o único. Em primeira pessoa, representantes de comunidades do Rio de Janeiro e de São Paulo usam a força das redes para levantar temas que não costumavam despertar interesse da imprensa tradicional para integrar moradores e também levar conteúdo para além das fronteiras entre morro e asfalto.

As páginas funcionam também como um registro inédito do cotidiano dos morros, apresentando personagens locais, eventos, vielas, áreas verdes e outros espaços pouco conhecidos por quem não frequenta as áreas.

A “pauta positiva” não mascara a realidade e também inclui reivindicações, usando imagens de obras paralisadas ou problemas de infraestrutura, como esgoto a céu aberto.

Essas fotos – que às vezes são sobrepostas por textos e viram “memes” – muitas vezes são colhidas por leitores, que assumem o papel de “correspondentes” nas áreas mais distantes das comunidades.

Do Alemão para Harvard

A produção de notícias por moradores de favelas teve seu auge de popularidade em 2010, durante a ocupação policial do Complexo do Alemão. Com ajuda de amigos, o jovem Renê Silva, então com 16 anos, narrou em tempo real a entrada da polícia, a reação dos traficantes e o pânico instalado na comunidade.

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Quatro anos depois, com mais de 142 mil seguidores no Twitter e uma equipe de 20 colaboradores, Renê deixou a violência em segundo plano. Há poucas semanas, embarcou para os Estados Unidos, onde deu palestra para pesquisadores vindos de mais de cem países na universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas do mundo.

“Fui falar sobre a importância da internet para as mídias comunitárias”, contou o jovem ao #SalaSocial. “Expliquei nosso trabalho e ouvi experiências de comunidades pobres do mundo inteiro, foi uma satisfação enorme.”

Para Renê, o que orienta o trabalho é a busca por diversidade de informações para o leitor.

“A ideia é criar dúvida nas pessoas que só sabem sobre a favela pelo que assistem na televisão ou leem no jornal. Às vezes, a mídia fala de uma maneira e o morador, de outra. O nosso conteúdo ajuda as pessoas a tirarem conclusões por si próprias”, explica o jovem, que ganhou uma bolsa para estudar jornalismo em uma faculdade particular.

Pelo aplicativo de mensagens Whatsapp, Renê divulga para uma rede de moradores, jornalistas e políticos iniciativas como a campanha de doações de leite em pó para as mães da comunidade. “Se você mora no Rio, podemos marcar de buscar no seu endereço de carro. Vamos embarcar nessa campanha #1LeiteporMês?”, diz o texto.

“Tem muito estereótipo, acham que ninguém mora aqui, que só tem tiro. Mas nosso jornal mostra que tem teleférico, festa junina, atividades comunitárias e uma galera feliz também.”

O objetivo é converter visibilidade em benefícios para a comunidade.

“O Cirque de Soleil é muito caro, um ingresso de R$ 400 é inacessível para muitas pessoas. Em março deste ano, o jornal conseguiu 1000 ingressos para distribuir entre os moradores. Pedi a eles, disse que era morador, contei que as criancas gostariam muito de ir e, pimba, deu certo”, conta.

Os ingressos, diz o editor-chefe da Voz da Comunidade, foram divididos com moradores de outras comunidades como Cidade de Deus, Rocinha, Vidigal e Santa Marta.

‘A imprensa é nóis’

Segundo o instituto Data Favela, que realiza pesquisas com foco em comunidades pobres no Brasil, 78% dos moradores de favelas entre 16 e 29 anos acessam a internet regularmente. Oito em cada 10 moradores de comunidades têm perfis no Facebook – a média nacional é bem mais baixa: 40% dos usuários.

Morador do Jardim Damasceno, perto da favela da Brasilândia, em São Paulo, o jornalista Cleber Arruda conta que o acesso só não é maior por conta de limites técnicos.

“As ‘lan houses’ ainda são muito fortes nas comunidades. Lá as pessoas carregam bilhete, imprimem documentos, trabalhos de faculdade”, diz.

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Magrão, diretor da Capão Cidadão, que reuniu 40 mil pessoas em festival na favela

“Eu brigo com os provedores porque a velocidade na parte mais alta do morro é de 250 megas e custa R$ 50. Não dá para assistir a nenhum vídeo e nem baixar nada. Na parte das comunidades a velocidade é maior, mas as pessoas chegam a ficar mais de uma semana sem internet.”

Segundo os provedores, além da falta de infraestrutura, problemas como roubos de cabos dificultam a democratização do acesso em alguns locais.

Enquanto assistimos a um grupo de 20 meninos jogando futebol numa quadra de terra vermelha, Paulo Magrão, diretor da ONG Capão Cidadão, do Capão Redondo, em São Paulo, diz não poder reclamar.

“Antes da internet, a principal mídia da favela era o poste”, afirma.

Os lambe-lambes e cartazes espalhados pelos pontos de iluminação foram pouco a pouco substituídos (ou complementados) pela internet, que, segundo Magrão, também ajuda na integração de diferentes comunidades.

“Somos várias favelas com lutas afins. Agora, uma ajuda a outra na divulgação de seus eventos, problemas e conquistas. Essa rede nos fortalece”, diz.

Sua última empreitada, um festival dentro da favela, reuniu mais de 40 mil pessoas. A Capão Cidadão, que se dedica à formação de crianças e adolescentes por meio de aulas de artes marciais, balé, culinária e reforço escolar, usou o Facebook para divulgar o evento, da mesma forma que anuncia debates recorrentes com figuras como Mano Brown, dos Racionais MCs, e o escritor Ferréz.

“Agora, a gente não precisa da boa vontade do governante ou do assessor de imprensa”, resume Magrão. “A imprensa é ‘nóis’.”

O pioneiro da Maré

Há 13 anos, André Fernandes, jornalista nascido e criado no complexo da Maré, no Rio, não procura a imprensa tradicional. Também não liga para a prefeitura ou pede ajuda a ONGs. Quando surge um assunto novo na favela, Santos liga seu computador, loga-se no Facebook e fala diretamente aos mais de 10 mil seguidores de sua página na rede social.

Criada por ele, a Agência Nacional das Favelas (ANF), pioneira nas notícias online produzidas por comunidades, hoje reúne 200 redatores, dos quais 150 moram em comunidades.

“Meu sonho é que todas as favelas do mundo tenham um correspondente da ANF”, diz.

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A agência, que se dedica a “trazer protagonismo às comunidades”, já não fala mais só sobre o Rio de Janeiro, mas de favelas de cidades como Belo Horizonte, Recife e São Paulo.

“Em setembro, vou para Portugal. Vou apresentar a experiência na Universidade de Lisboa. Depois, faço o mesmo em Barcelona.”

Segurança pública e direitos humanos são alguns dos principais temas explorados pela agência. “Publicamos artigos de intelectuais convidados também, gente com pós-doutorado, que compara a nossa realidade a de Medellín, na Colômbia, onde as favelas são parecidas.”

O jornalista diz estimular a prática de “ouvir os dois lados” em qualquer reportagem. “Na internet, isso nem sempre acontece e nossa ideia é ter credibilidade, ser respeitado por quem concorda ou não com o que está lendo”, diz Fernandes.

‘Direta e transparente’

O ativista Caio Castor, da página Moinho Vive, da favela do Moinho, alvo de disputa fundiária em São Paulo, conta que um dos principais exercícios é disseminar o uso da tecnologia como um aliado dos moradores.

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“Hoje, quando a polícia entra aqui, tudo mundo já pega a câmera e começa a filmar. Eles sabem que tudo está sendo registrado e respeitam mais”, conta.

Segundo Castor, os registros são positivos tanto para a polícia quanto para os moradores, numa relação “direta e transparente”.

Outro exemplo dessa relação veio com a visita do prefeito Fernando Haddad à comunidade, no meio do ano passado. Os vídeos, publicados principalmente no YouTube, se espalharam pela rede e hoje são usados pela comunidade como provas de promessas sobre a regularização da região.

No Complexo do Alemão, onde desde o início deste mês um conflito entre traficantes e policiais tem resultado em tiroteios diários, os moradores consultam as várias páginas locais no Facebook para saber se o caminho para o trabalho fora da comunidade é seguro.

Em caso de perigo, o alerta é para que não saiam de casa.

“Estão nos informando aqui no grupo do What [Whatsapp, aplicativo de mensagens para smartphones] que estão dando tiros nesse momento no Areal e Grota, devido a isso vamos nos manter em nossas casas”, dizia um dos posts recentes da Alemão Morro, que tem 13 mil seguidores.

Fotos de supostas vítimas do confronto e vídeos do corre-corre de policiais e traficantes em vielas têm sido compartilhados à exaustão. O ritmo acelerado, dizem os criadores das páginas, estimularia a “consciência política” dos moradores.

Cleber Araújo Santos, morador da comunidade há 10 anos, criou a página Complexo Alemão, uma das mais movimentadas.

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Foto registrada por leitor numa favela carioca e compartilhada pelo Facebook

Ele diz que nunca sofreu qualquer tipo de retaliação, nem por parte do tráfico nem por parte da polícia. “Uma regra aqui da favela é o papo reto, não pode ter curva. Se você fala uma coisa que não é verdade, depois você tem que provar. Por isso a gente vai atrás para confirmar e checar tudo direitinho. Todo mundo sabe que isso pode dar morte aqui dentro”, diz.

Fonte:bbc

 

 

 

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