Samuel Vida: Perspectivas Afrodescendentes para o Summit do Futuro

Geledés na ONU, incidencia internacional de Geledés Instituto da Mulher Negra

Confira a fala de Samuel Vida em evento promovido por Geledés - Instituto da Mulher Negra

As lições da crise global da pandemia de COVID-19 e as contribuições dos afrodescendentes para o aperfeiçoamento da capacidade institucional de respostas adequadas e mais justas em contextos de choques globais complexos

Quero cumprimentar as organizadoras e os organizadores do painel Plataforma de Emergência – Respostas Efetivas em Contextos Afrodescendentes – parte integrante da atividade “Perspectivas Afrodescendentes para o Summit do Futuro”, e destacar a sua relevância estratégica para pensar o cenário geopolítico contemporâneo. Agradeço ao Geledés pela organização da atividade e pelo gentil convite que me possibilitou integrar esta interlocução. Cumprimento, também, as demais pessoas que integram este painel: Epsy Campbell, Diego Jesus e Iradj Eghrari.

Na condição de homem negro na diáspora afro-americana, integrante de uma tradição civilizatória fundamental para a construção do mundo moderno e contemporâneo, que, no entanto, costuma ser desconsiderada pelas instituições hegemônicas, militante de uma organização negra que intervém na luta contra o racismo através do direito, pesquisador e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, me sinto honrado em poder compartilhar ideias e expectativas com as demais pessoas que integram este esforço e aprender com as ricas trocas que poderão se efetivar nesta oportunidade.

Minha exposição parte da perspectiva situada, acima descrita, e do desafio de integrá-la na construção de respostas comuns adequadas às crises decorrentes de choques globais complexos1 e seus impactos  junto às comunidades da diáspora negra, desde a percepção brasileira experimentada durante a pandemia do COVID-19. No auge da perplexidade causada pela pandemia, em conjunto com o professor Felipe Milanez2, publicamos um artigo3 chamando a atenção para a probabilidade de incidência desproporcional dos efeitos do coronavírus junto às populações vulnerabilizadas de povos originários e negros, os impactos na aceleração dos genocídios e a consequente necessidade de formulação de políticas específicas que considerassem aquela situação.

Três lições importantes podem ser tiradas da experiência dolorosa do enfrentamento da pandemia da covid-19, que nos apresentou a materialização brutal do primeiro choque global do século XXI, e escancarou as fragilidades dos mecanismos e instituições disponibilizadas nas esferas estatais e multilaterais.

A primeira lição demonstrou a insuficiência do conhecimento científico monocultural acumulado pelos centros ocidentais para prever e responsabilizar instituições a se antecipar aos eventos globais traumáticos. Também evidenciou a desconcertante cristalização de manifestações ideológicas de caráter negacionista, capturadas por interesses econômicos predatórios e insensíveis às circunstâncias trágicas e cosmovisões exclusivistas, refratárias às evidências das ameaças postas e aos saberes produzidos no âmbito das comunidades acadêmicas e de outras cosmopercepções sobre a existência humana e as interações com a natureza.

A segunda lição explicitou o despreparo e insuficiência responsiva dos arranjos institucionais, organizacionais e políticos disponíveis nas estruturas estatais e multilaterais, assim como a insuficiência dos arranjos econômicos privados e das redes de solidariedade socio comunitárias. A geopolítica dominante estabelecida se mostrou incapaz de enfrentar adequadamente os desafios postos, o que contribuiu decisivamente para a amplificação dos efeitos letais da pandemia. As estruturas econômicas hegemônicas também fracassaram no provimento de respostas adequadas e mergulharam numa grave e perigosa crise, cujo custo recaiu, novamente, sob os ombros das sociedades e do financiamento público. Apesar de terem cumprido importantes papeis na mitigação das ausências ou insuficiências das atuações institucionais estatais e da esfera econômica, as redes de solidariedades comunitárias mostraram-se frágeis e pouco estruturadas para atender satisfatoriamente às demandas dos segmentos mais vulnerabilizados.

A terceira lição, de resto a mais previsível, evidenciou o impacto desproporcional dos efeitos da crise junto aos setores mais vulnerabilizados, a exemplo de grupos racializados e subalternizados, como povos originários e comunidades negras, mulheres, pessoas com deficiência, crianças, pessoas de orientação sexual diversa da hegemônica etc, expostos a discriminações institucionalizadas e longevas iniquidades.

A experiência traumática e custosa das impactantes e distintas consequências da pandemia da COVID-19 deve nos orientar persistentemente a buscar aprendizados para a construção de mecanismos mais adequados à antecipação de riscos e mobilização de instrumentos minimizadores dos indesejáveis e injustos efeitos desiguais. Sem a ilusão de que existem respostas fáceis, e com a abertura para aprender com as múltiplas experiências desenvolvidas em escala mundial ou local, podemos apontar algumas possibilidades que merecem nossa reflexão e aprofundamento para a produção de respostas mais efetivas em eventuais novos cenários de crises globais

A primeira possibilidade deve incidir na busca de incremento das pesquisas e estudos que extrapolem a tradição especista, racista e ocidentocêntrica hegemonizada pela submissão das instituições acadêmicas aos interesses econômicos e políticos dominantes. Este exercício pode ampliar os horizontes de pluralismo epistêmico e as capacidades de leituras sobre as diversas experiências do existir e os seus modos de vida. Pode, portanto, oferecer outros elementos orientadores capazes de produzir as condições de construção de alguma previsibilidade e antecipação de respostas possíveis, além de buscar o estabelecimento de um lastro mínimo de consenso sobre a inteligibilidade acerca dos fenômenos críticos. As universidades e centros de estudos devem receber estímulos e recursos para o adequado desenvolvimento desta área de pesquisas estratégicas, acompanhadas da ampliação da pluralização epistêmica e do diálogo com as cosmopercepções de outras tradições civilizacionais. A produção de conhecimento sob bases epistêmicas plurais pode concorrer para melhorar a capacidade comum de entendimento e produção de respostas mais adequadas em escala global.

A segunda possibilidade deve oportunizar uma recomposição das estruturas institucionais mediante a incorporação permanente de instâncias de monitoramento, planejamento e coordenação de exercícios de simulação das catástrofes previsíveis. Estes experimentos, ainda que não eliminem os riscos de surpresa, diante da relativa imprevisibilidade dos eventos de choque global, podem contribuir para reduzir o tempo de reação e aperfeiçoar as condições de produção de respostas adequadas. Deve se constituir num imperativo ético, político e epistemológico o reconhecimento da nossa permanente sujeição a riscos iminentes e a necessidade de desenvolvimento de outra forma cultural para enfrentar estes fenômenos, com menos arrogância e maior disposição para lidar com as responsabilidades e desafios.

A terceira possibilidade deve mobilizar a busca por meios de aceleração do atingimento das metas de desenvolvimento que focam na minimização e superação das principais vulnerabilidades estruturais vigentes, reduzindo os desníveis de acesso aos recursos materiais, simbólicos e políticos, única forma de evitar os impactos desproporcionais provocados nos segmentos mais expostos às consequências das crises. Estas iniciativas devem repercutir nas anteriores, pela inclusão das variáveis de vulnerabilidade nas ações de pesquisa e rearranjos institucionais, assim como deve concorrer para a mobilização direta dos sujeitos historicamente desconsiderados como protagonistas ativos das respostas. Para tanto, devem ser mobilizados estímulos e recursos para a ampliar a participação destes segmentos nas esferas institucionais e o fortalecimento das condições para a gestação de respostas comunitárias e mobilização das redes de solidariedade construídas nestas comunidades. 

Finalizo destacando a necessidade de superação da postura colonial-moderna de excluir os grupos desconsiderados dos espaços de formulação e enfrentamento dos desafios postos pelas crises cada vez mais globais e comuns que nos assediam. As instituições estatais, multilaterais, universidades e demais arranjos econômicos precisam experimentar maior porosidade, abertura epistêmica e inovação organizacional para ampliar sua capacidade de aprendizagem e elaboração de respostas e aprofundar a busca por equidade e justiça. A liderança do Geledés neste esforço deve ser louvada e inspirar outras mobilizações nesta direção.


  1. Expressão utilizada para descrever fenômenos capazes de produzir consequências severamente perturbadoras para uma proporção significativa da população mundial, a exemplo de pandemias, colapso na interconectividade informacional, eventos climáticos extremos etc.  https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/our-common-agenda-policy-brief-emergency-platform-en.pdf ↩︎
  2.  Professor do IHAC – Universidade Federal da Bahia. ↩︎
  3. https://www.clacso.org/pandemia-racismo-e-genocidio-indigena-e-negro-no-brasil-coronavirus-e-a-politica-de-exterminio/ ↩︎

Samuel Vida* –  Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre – Salvador, Ba; Coordenador do Afro Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica – AGANJU; professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e Coordenador do Programa Direito e Relações Raciais – PDRR-UFBA.


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