Santana celebra a África em disco: ‘Mandei essas músicas para Prince, Eric Clapton, Sting… E nunca tive resposta’

Para o lendário guitarrista, ‘pessoas estão sedentas por integridade, e a música africana traz isso’

Por Luccas Oliveira*, do O Globo

 

Em ação. Com seu chapéu e instrumento inseparáveis, Santana prepare-se para mais um solo de assinatura própria (Foto: Roberto Finizio / Extra)

Com seu indefectível chapéu e uma taça de vinho na mão, o guitarrista Carlos Santana começa sucinto e irreverente ao responder por que lança agora “Africa speaks”, disco em que celebra os ritmos daquele continente:

— Eu já fiz todo o resto, você sabe (risos) .

A resposta, como todas as outras deste papo, se expande por alguns minutos. Aos 71 anos, Santana tem muito o que dizer. Tanto nesta entrevista na Cidade do México quanto em sua música. Ao longo de 30 álbuns em cinco décadas, o mexicano criou assinatura própria com as experimentações de sua guitarra — há décadas, o modelo PRS Santana.

Em 2019, Santana está em festa. No dia 7 de junho, “Africa speaks” chega às plataformas digitais, uma semana antes de seu mais bem-sucedido álbum, “Supernatural”, completar 20 anos. E, em agosto, Santana será uma das atrações principais da edição comemorativa de 50 anos do icônico festival de Woodstock, essencial para impulsionar sua carreira para além dos jazz clubs de San Francisco, cidade onde cresceu.

Na sede de sua gravadora na capital mexicana, Santana falou com o GLOBO.

Ouvindo “Africa speaks” dá para sentir que o senhor buscou juntar a alma de jazz e blues de sua guitarra com a espiritualidade percussiva das religiões de matriz africana. Tem até uma levada quase brasileira na percussão. A ideia era essa?

Sim. Com todo o respeito, gosto de dizer que são os mesmos ovos, dos iorubás, só depende da maneira como você os mexe. Na República Dominicana dá merengue, no Brasil é o candomblé e a macumba, na Colômbia a cumbia… Mas todas as músicas vêm da África. Pessoas estão sedentas por integridade, e a música africana traz isso, elevando as pessoas a um lugar em que o tempo e a gravidade desaparecem.

E por que fazer essa celebração agora?

Eu já fiz todo o resto, você sabe ( risos ). Eu mandei essas músicas para Prince, Eric Clapton, Sting… E nunca tive resposta deles. Então, eu disse “ok, mais para mim!”. Esse é o momento perfeito para apresentar essas músicas, porque elas vêm de um desejo de sabedoria, de elegância, de fortitude e de força. A resiliência da música e dos povos africanos me inspiram muito. E eu sou grato por ser parte da família, não me sinto um turista na África, sabe?

Rick Rubin foi o escolhido para “Africa speaks”. Qual foi a contribuição dele? Não lembro de outros trabalhos de Rubin que tenham esses elementos da música africana…

Você está correto. Acho que o mais próximo que ele fez foi provavelmente os Beastie Boys, pela parte rítimica. Eu enviei um iPod para Rick e disse “é isso que eu quero fazer”. Ele levou para o Havaí, com sua mulher e o bebê deles. Dias depois, me ligou estupefato. “Eu quero fazer isso, cara! Em ‘Supernatural’, você teve vários convidados. Quem você quer nesse álbum”. Eu respondi: “apenas duas. ( A cantora espanhola ) Buika e (britânica ) Laura Mvula. E assim foi. Gravamos 49 músicas em dez dias, todas elas com essa gana da música africana, e Rick captando tudo. Apenas duas ou três precisamos gravar de novo, o resto foi no primeiro take. Eu ouvi isso de Buddy Guy e Miles Davis: “o primeiro take é o certo”.

Você citou “Supernatural”. É um álbum que em 1999 já juntava a guitarra com elementos do hip-hop e tinha uma série de duetos com artistas de diferentes gêneros, dois processos muito usados hoje em dia. Quando você gravou, sentia que seria tão atual e moderno nos dias de hoje?

Não. Era um desafio para mim. Clive Davis ( lendário produtor e executivo da indústria ) me disse: “eu te vi ao vivo, você é incrível, mas quero saber se tem a disciplina de vir comigo ao estúdio e criar um single para as rádios. É um tipo diferente de música”. E eu topei. Começamos a ligar para Maná, Lauryn Hill… Aliás, foi por Lauryn que Eric Clapton entrou no álbum, porque me viu tocando com ela no Grammy. Mas, para mim, é uma coisa muito natural tocar com humanos. Não tive problema com nenhum deles.

O guitarrista Carlos Santana Foto: Maryanne Bilham / Extra

Tem alguém com quem você gostaria de gravar agora?

Sem dúvidas, com ( o saxofonista camaronês ) Manu Dibango, porque “mama-se, mama-sa, ma-ko-ma-ko-ssa” ( cantarola “Soul makossa”, composta por Dibango, cujo refrão ficou conhecido quando usado por Michael Jackson em “Wanna be startin’ somethin’ ). Quero ficar uma semana no estúdio com esse cara, ele escreve músicas incríveis.

Woodstock completa 50 anos em 2019. Qual sua maior lembrança do festival?

Eu estava em um estado de consciência mais elevado. Era uma época que eu tomava LSD, ayahuasca… E quando chegamos lá, estávamos programado para tocar 12 horas depois, então usamos drogas para nos soltar. Só que um produtor apareceu mandando a gente correr para o palco, duas horas depois. Eu olhava para o público e parecia uma ameba de cores, achava que minha guitarra era uma cobra… Fiquei repetindo mantras e pedindo a Deus “me permita tocar afinado e no ponto certo, prometo pegar mais leve”. E funcionou, todos amaram o show.

Qual sua relação com as drogas hoje em dia?

Parei, nem fumar eu fumo. Mas sou a favor de ervas medicinais. Se eu não fosse músico, queria ser curandeiro, inclusive. Eu acho que essa questão é simples: os homens fazem drogas, e a terra faz remédios.

Não é estranho que a sociedade ainda esteja, 50 anos depois, buscando liberdade, amor livre, união, bandeiras levantadas por Woodstock?

É muito peculiar que não tenhamos aprendido a lição coletiva. Quando você dispensar a ilusão de um país ser superior ao outro, aí então vamos crescer. Quando chove, todos nós nos molhamos; quando faz sol, todos ficamos queimados. Quando percebermos que somos todos iguais sob os olhos de Deus, é quando você vai ver uma mudança real nesse planeta. Agora, nós ainda estamos programando, como um computador, com os dados errados. Eu sou um homem hippie, eu sei, mas ainda acredito que alcançaremos uma nova dimensão de bondade e misericórdia.

O senhor cita Deus, espiritualidade e religião constantemente em entrevistas e discursos. Num momento como esse, em que tais elementos são utilizados para fins políticos, qual é a importância da religiosidade?

Duas coisas precisam ser atualizadas, como o seu celular e o meu: a Bíblia e as constituições. Ambas foram escritas quando as pessoas ainda estavam comendo os piolhos uma das outras. Está na hora de reler, pegar e ( faz barulho de página arrancada ) “isso é besteira”, “oh, isso é bonito, mantém”. No momento em que fizermos isso, poderemos entrar numa nova era nesse planeta, em que realmente coexistiremos sem a necessidade de dinheiro, religião ou políticos. As pessoas podem dizer que eu sou hippie, que estou viajando, mas eu venho viajando a minha vida toda e olha onde eu cheguei ( risos )!

Sua trajetória pessoal e musical renderia um filme, mas até hoje nenhuma obra audiovisual além dos seus shows foi produzida. Por quê?

Já tive muitas propostas e sempre recusei. Não quero que seja um filme sobre dificuldades, com tons de sofrimento. Ron Howard ( produtor e diretor vencedor do Oscar ) me procurou porque quer fazer algo sobre minha carreira, um filme ou uma docussérie. Falei para ele “eu tenho que ser o dono da minha história. Dou esperança e valor para as pessoas”. Muita gente entra no Hall da Fama do Rock e vai para o ostracismo. Eu entrei em 1997, “Supernatural” fez todo aquele sucesso em 1999 e, graças a Deus, ainda estou inspirando as pessoas e tentando narrar um mundo melhor.

* Luccas Oliveira viajou a convite da Universal Music

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