Saúde das mulheres é ameaçada com pesquisas médicas focadas em homens

Menos remédios e tratamentos são desenvolvidos para elas

Por Cesar Baima Do O Globo

Uma pessoa colocando remédios na mão
Foto: Shutterstock/Perfectlab

O desenvolvimento de novos tratamentos e remédios é um processo longo e complexo. Em geral, começa na bancada dos laboratórios, segue com estudos pré-clínicos e experimentos com animais, para então chegar aos ensaios clínicos com humanos. Apesar das recentes recomendações e regulamentações pela inclusão e diferenciação de gêneros em todas as etapas, esse caminho ainda é marcado por fortes desigualdades, que podem prejudicar o atendimento das mulheres e sua saúde. É o que aponta um estudo publicado no periódico médico-científico “The Lancet”, em uma edição inteiramente dedicada às questões de gênero na ciência e na medicina.

De acordo com o levantamento, que analisou mais de 11,5 milhões de artigos de pesquisa médica publicados entre 1980 e 2016, houve alguma evolução nesse sentido no período, especialmente nos ensaios clínicos, com uma maior participação feminina nessa fase, nos últimos anos. Mas a lacuna continua grande na ciência básica, com mais de dois terços das pesquisas biomédicas ignorando as diferenças entre homens e mulheres e não reportando o sexo das linhagens de células usadas nos experimentos, geralmente masculinas.

— A exclusão de menção ao gênero nas pesquisas pode prejudicar a elaboração de políticas, o fornecimento de serviços, a saúde e os resultados de tratamentos, com o sexo devendo ser levado em conta em todo o ciclo das pesquisas — destaca Vincent Larivière, pesquisador da Universidade de Montreal, no Canadá, e líder do estudo. — A diversificação na força de trabalho da ciência e nas populações estudadas, das linhagens de células aos roedores e aos humanos, é essencial para que produzamos pesquisas médicas mais rigorosas e efetivas.

Com a lacuna de gênero nos objetos das pesquisas, não só problemas biológicos específicos das mulheres são negligenciados ou permanecem desconhecidos como muitas vezes efeitos adversos, interações perigosas ou dosagens adequadas de novos medicamentos para elas só são descobertos na prática clínica, com os remédios já no mercado, o que traz consequências potencialmente catastróficas.

Exemplo clássico disso é a talidomida, droga desenvolvida em meados do século passado como sedativo com poucos efeitos colaterais. Receitado para tratar enjoos matinais em grávidas sem ter suas chamadas propriedades teratogênicas (prejudiciais aos fetos) avaliadas, o medicamento provocou uma onda de malformações fetais que marcou uma geração.

Mais recentemente, levantamento do Escritório Geral de Contabilidade dos EUA (GAO, na sigla em inglês), espécie de ombudsman do governo americano, verificou que oito dos dez remédios retirados do mercado pela Administração de Alimentos e Drogas (FDA, também na sigla em inglês) entre 1997 e 2001 apresentavam risco maior à saúde das mulheres do que à dos homens, sendo ligados à ocorrência mais frequente de problemas nas válvulas do coração, arritmias cardíacas potencialmente fatais e falência do fígado nelas.

E, quando não mata, a desigualdade entre os sexos nas pesquisas médicas pode levar a um maior sofrimento delas. Exemplo disso é o diagnóstico e gestão da dor, aponta Telma Mariotto Zakka, médica especialista na área e integrante da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (Sbed). Segundo ela, o viés de gênero surge já no atendimento, com muitas mulheres vendo suas queixas menosprezadas como reflexo de estudos que afirmam que elas têm menor tolerância à dor, bem como um limiar de dor mais baixo do que os homens, contrariando o imaginário popular que as aponta como mais resilientes.

— Esse é um raro caso em que o imaginário popular está certo — diz Zakka. — Essa visão das mulheres como mais sensíveis à dor é fruto de um viés estatístico. Como elas são mais propensas a se queixar e procurar ajuda do que os homens, cujo ideal de masculinidade é ser “durão” e resistir à dor mais bravamente, os dados acabam imputando a elas uma menor tolerância à dor.

Avaliação clínica

Ao contrário, destaca a médica, estudos específicos mostram as mulheres mais resistentes à dor do que os homens. Zakka cita como exemplo um que avaliou a autoadministração de analgésicos opioides por eles e elas em quadros pós-operatórios, verificando que, embora os homens expressassem menos desconforto, usavam as drogas bem mais do que as mulheres, que, por sua vez, se queixavam mais do desconforto.

— Isso faz com que a dor das mulheres seja subdiagnosticada e subtratada — afirma. — Assim, vemos casos como de mulheres que chegam nos prontos-socorros se queixando de dores no peito e que ouvem que são apenas ataques de pânico. Acabam morrendo de infarto, sem atendimento.

Já com relação à lacuna entre os gêneros nas pesquisas para desenvolvimento e uso de remédios, Zakka diz que isso a obriga a testar as medicações e adaptar suas dosagens no curso dos tratamentos da dor crônica com maior frequência e atenção nos casos de pacientes mulheres.

— Como as pesquisas básicas e clínicas são feitas principalmente em animais machos e pacientes do sexo masculino, há a necessidade dessa maior individualização no tratamento da dor crônica em mulheres, fazendo as adaptações dos medicamentos e doses, avaliação de interações e observação de efeitos adversos já na prática clínica, pela falta de dados sobre isso nos estudos prévios — conclui.

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