“Não há saúde mental onde tem racismo”, afirma psicanalista

A luta de ativistas por direitos se torna, muitas vezes, uma luta para manter a sanidade

Por CAROLINA SCORCE, da Carta Capital 

Manifestações durante as Jornadas de Junho em 2013 no Brasil. Foto: Mídia NINJA

O suicídio da ativista Sabrina Bittencourt, que ajudava na denúncia de abusos sexuais, entre eles o que levou à prisão do médium João de Deus, assim como outros casos de menor repercussão na mídia, como a morte de Daniel Teixeira, do movimento negro do Capão Redondo, e que em 2016 também decidiu pôr fim à própria vida, ascendem a luz sobre os reveses da vida de um militante, e da importância da saúde mental na atividade política para fora dos muros.

Essa preocupação tem levado profissionais da saúde e o próprio ativismo a reavaliar suas práticas, abrindo caminho para rodas de conversa e atendimentos específicos.

“Ó, tem militante mal, precisamos de ajuda.” Em meio ao fogo cruzado das manifestações de 2013, os psicanalistas do grupo Margens Clínicas, coletivo que oferece atendimento a vítimas de violência de Estado, veem pipocar os pedidos de atendimento clínico.

O grupo foi fundado oficialmente em 2012, mas, desde 2007, quando a reitoria da Universidade de São Paulo foi ocupada, o trabalho com a saúde mental de militantes e ativistas já era feito.

Em 2013 há um ponto de inflexão. “Alguém que tivesse ido às manifestações e sido machucado pela polícia nos pedia, individualmente, para ser atendido, porque o trauma individual dele tinha sido muito forte”, conta a psicanalista Anna Turriani.

Em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, há outro ponto de inflexão. Agora os pedidos eram feitos por organizações, entidades e movimentos sociais. “Naquele momento fica claro para os grupos que eles precisavam se cuidar no coletivo. É a percepção dos efeitos nocivos da militância, de que se eles não se cuidassem, o trabalho deles poderia implodir”, afirma a psicanalista.

Se militar pode ser duro, a vida pode ser ainda mais. Como ter saúde mental em mundo de exclusão, racismo, machismo e homofobia? Por isso, para o grupo os especialistas, o sofrimento de militantes tem de ser tratado no coletivo, dentro do movimento. “A dor está inscrita na estrutura do que ele (militante) faz. O ativismo tem de entrada essa marca, de que machismo e racismo é uma coisa estrutural”, explica Anna.

Ela afirma ainda que a luta por direitos, por equidade, é também uma luta por saúde mental. “Não há saúde mental onde tem racismo; quando o moleque não pode escolher usar seu cabelo black porque senão ele apanha da polícia. Quem não adoece sendo humilhado?”

Depois da fantasia, paranoia e apatia

Victor Barão, psicanalista no grupo, afirma que a partir de 2016 os relatos sobre perseguição aumentaram. E o medo de uma suposta caça às bruxas pode fazer com que os militantes abram mão do projeto coletivo em detrimento de projetos pessoais, em tese mais seguros. Mas não sem dramas. Afinal, desistir da militância, ainda que temporariamente, abre caminho para um sentimento de frustração.

“Notei esse retorno da paranoia com mais força nos últimos tempos, e aqui isso tem gerado uma certa apatia para eles”, reforça Laura Rozenbaum, também do Margens Clínicas.

Para os especialistas, isso decorre do fato de os movimentos sociais e grupos não conseguirem entender, nesse momento, tudo o que foi conquistado. “É algo como: fizemos tanto para isso?”, afirmam. “As pessoas estão compreendendo que grandes erros da esquerda no passado acontecem por falta de escuta. Como no caso das mulheres marginalizadas dentro do próprio movimento social”, acrescenta Anna.

Ouvir o outro passa a ser então o melhor remédio. Não só no divã do analista, mas nas ruas, nas rodas de conversa e de escuta abertas. Nesse processo, as mulheres negras estão muitos passos na dianteira. São elas que, cada vez mais, bradam: “Não dá para falar em militância sem falar do meu sofrimento.”

O GRUPO DÁ OFICINAS SOBRE COMO OUVIR O OUTRO. (FOTO: MARGENS CLÍNICAS)

Quem eu deveria ser?

Uma espécie de síndrome de super-herói, de alguém que coloca para si incumbências sobre-humanas, ou que infla demais o ideal daquilo que se deseja ser ou fazer, é responsável por provocar quedas bruscas e grandes frustrações. É aquele ou aquela que parece carregar o peso do mundo nas costas.

Se por um lado os ideais ajudam os militantes a agirem, eles são responsáveis pela repetição eterna do fracasso. Afinal, é um ideal. Quanto maior, mais distante fica.

“Em militâncias em grupos mais hierarquizados, em que os sujeitos são galgados a quadros, o peso e a expectativa são enormes. Não é por acaso que diversas situações desemboquem no suicídio. Inventa-se incumbências que não podem ser cumpridas”, explica Rafael Alves Lima, que também faz parte do Margens Clínicas.

E os símbolos que constroem essas ideias são também construídos socialmente, como é caso das histórias de príncipes encantados que salvam moças indefesas. A histórias de heroísmos irrealizáveis estão por aí, e fazem muito sucesso.

Do luto à luta

Muitos dos que vão para a militância como maneira de fazer política, fazem pela necessidade de lutar por direitos que já foram perdidos. Como os sem-teto, que se organizam para reivindicar moradia. A luta, então, rememora um trauma já vivido, e qualquer perda nesse processo pode gerar um baque muito maior do que em pessoas que buscam na militância uma causa ou um ideal mais amplo.

O grupo explica que por vezes a militância repete o trauma, ao mesmo tempo em que promete um destino e dá sentido à vida. “As pessoas e movimentos têm de entender que esse é um processo coletivo de construção, e que isso prevê o cuidado de um com os outros. A militância é essencialmente um projeto coletivo”, argumenta Lima.

 

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