A conquista de uma cadeira no ensino superior em um país como o Brasil é motivo para se comemorar. O cenário é trágico e os números não nos deixam mentir. Segundo relatório realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apenas 14% dos adultos brasileiros possuem educação superior.
Por Kauê Vieira Do Hpeness
Confrontado com a média de 35% de outros países consultados pela OCDE, o cenário brasileiro é desanimador. Claro, não há como negar os avanços substanciais dos últimos 10 anos, insuflados, sobretudo, por ações de inclusão social, entre elas a instauração da política de cotas.
Entre 2005 e 2015, o percentual de negras e negros ocupando bancos das universidades dobrou, subindo de inexpressivos 5,5% para 12,8%, em 2015. Os dados foram colhidos pelo IBGE. Como dizem por aí, ao lado da solução está o problema. No campo da educação em nível superior o maior deles está na mente.
A saúde mental dos universitários brasileiros está preocupando autoridades de saúde, principalmente pelo aumento dos registros de casos de suicídio. A USP, uma das referências em ensino na América Latina, registrou, apenas no curso de medicina, seis tentativas de suicídio. A Faculdade de Veterinária e o Instituto de Ciências Biológicas tiveram atos consumados.
Manoela Barbosa é mestra em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia e em conversa com o Hypeness, apontou a presença do racismo como um dos elementos decisivos na deterioração da saúde mental.
“A nossa presença mais numerosa nos últimos anos no universo do mundo superior, de fato é algo a ser celebrado, por outro lado, evidencia que não estamos isentos de vivenciar situações de preconceitos e racismo, ao contrário,
o que observamos desde a implantação da política de cotas é o acirramento dos conflitos. Inclusive no campo epistêmico e dos mais variados pontos de vista. É extremamente preocupante, quando observamos que tais práticas não vem sendo combatidas, nem os casos tratados com severidade.
No Brasil, ainda há uma enorme dificuldade de compreender que o combate ao racismo deve ser uma tarefa de todas as pessoas”, reflete Manoela, com formação também filosofia.
As universidades brasileiras estão realmente abertas para a diversidade? Os centros de ensino superior, em sua grande maioria, historicamente foram espaços reservados para uma pequena parcela (com maior poder aquisitivo) da sociedade. Neste sentido, a partir do momento em que indivíduos de características, cores e origens diferentes reclamam o seu lugar de fala, uma erupção é inevitável. A chamada guerra de privilégios.
Manoela, que participou recentemente de debates sobre a obra da escritora Conceição Evaristo, acredita que o mais difícil é manter a sanidade em tais ambientes. Para ela, isso somado com as dificuldades sociais, dificulta muito a conquista do canudo.
“Acaba por ser uma árdua tarefa se manter nesse ambiente que, em muitas circunstâncias, revela-se como se não tivesse sido feito para nós.
Nos estudos de pós-graduação no Brasil, somamos enquanto resistência, somamos por que, se não mirarmos a perspectiva do aquilombamento, não sobrevivemos nesse espaço, tampouco, nos manteremos saudáveis.
Não dá para refletir sobre racismo sem levar em consideração seus efeitos também na saúde psíquica e, nesse sentido, mais uma vez, somos nós, mulheres negras, quem pagamos a conta, pois, nesse cenário perverso somos as mais afetadas”, explica.
Psicologia interseccional
Ivani Oliveira é psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para ela, o apoio psicológico deveria ser praxe em todas as instituições de ensino. A profissional cita ainda a ação de noções meritocráticas, utilizadas como arma para disseminar a sensação de que determinados grupos não são bem-vindos.
“Devido aos processos psicológicos que estão envolvidos na aquisição e explicitação do conhecimento que pode ser facilitado ou dificultado conforme as relações humanas que acontecem dentro das universidades,
essas relações são marcadas por diversos sistemas de opressões comomachismo, racismo, lgbttfobia e ou preconceito de classe. Todas são geradoras de sofrimento, que acaba sendo intensificado quando estudantes se deparam com dificuldades comuns na leitura e produção textual, porque a vivência dessa dificuldade somada à vivência do preconceito, pode levar ao entendimento de que aquele não é o seu lugar, conforme o mito da meritocracia.
Neste momento, a psicologia pode colaborar auxiliando a pessoa a identificar as causas do seu sofrimento, compreender as emoções e estabelecer maneiras para lidar com as dificuldades no ambiente acadêmico”.
Percebendo a urgência do assunto, a Universidade de São Paulo anunciou recentemente a abertura de um centro de atendimento psicológico para seus alunos. O escritório de saúde mental da USP vai fazer análises individuais e promover reuniões de grupo. A notícia chega depois da confirmação da morte por suicídio de 4 pessoas em apenas 2 meses no campus da universidade paulista.
“Ter sanidade mental é manter-se minimamente equilibrado e pertencente ao ambiente em que a pessoa está inserida, portanto ela torna-se indispensável para que o estudante possa obter bons resultados no meio acadêmico”, salienta Ivani.
A psicóloga completa dizendo que é preciso abrir espaço para “referências que dialoguem com a realidade brasileira” e que a mudança está, aos poucos, acontecendo com a “entrada de estudantes negras e negros, indígenas e pessoas trans que a cada movimento trazem novas possibilidades de conhecimentos para dentro das universidades”.
Além dos centros de atendimento psicológicos, os coletivos atuam de forma positiva na prevenção do suicídio. Abertos ao debate sobre diversidade, estes centros de debate funcionam como um abraço gostoso, sabe? Não tem jeito, a construção é coletiva.
“O Coletivo Luiza Bairros, na Universidade Federal da Bahia, está no fronte para fazer valer a lei de políticas de cotas para o concurso docente. Há ainda, a plataforma Opará Saberes, coordenada pela Carla Akotirene, que visa proporcionar oportunidades de ingresso na pós-graduação, com foco na comunidade negra, oferecendo suporte acadêmico para as seleções. Adentrando a universidade, a necessidade de aquilombamento se faz ainda mais necessária, não à toa vimos surgindo muitos coletivos, grupos e projetos”, analisa Manoela Barbosa, mestra em Crítica Cultural.
Com união, apoio e organização, é possível colocar por terra conceitos ultrapassados e geradores de práticas como epistemicídio. Esta palavrinha difícil representa a recusa em validar a produção de conhecimento de determinados povos. Sabe aquele momento em que o orientador ou orientadora torçe o nariz quando você quer colocar racismo dentro de uma análise sobre dança? Ou falar de machismo numa tese de tecnologia? Bingo! É o tal do epistemicídio agindo a todo o vapor.
“A minha trajetória acadêmica foi extremamente difícil, afinal de contas ter feito uma graduação em filosofia me colocou frente a muitos dilemas, já que o limite teórico para a licenciatura em filosofia, não ultrapassava o limite eurocêntrico, por outro lado, me despertou para a busca de outros sentidos para os estudos filosóficos, que buscassem dialogar com outras fontes de conhecimento e, assim, pluriversar a perpespectiva em torno dos estudos em filosofia.
Ao longo, da minha formação acadêmica o racismo assim como o sexismo, andavam de mãos dadas, tinha que lidar com perguntas do tipo, ‘nunca tinha visto pessoas negras fazerem filosofia’ ou ‘mulher e filosofia não combinam, mulher negra, pior ainda…’
A medida em que os avanços educacionais foram sendo conquistados, as dificuldades se tornam ainda mais expressivas, na pós-graduação a nossa tímida e expressiva presença parece causar ainda mais incômodo. Durante os estudos de mestrado, foi onde pude notar com mais veemência o ‘desconforto’ que as negras presenças causam”, diz Manoela.
Com a psicóloga formada pela PUC, Ivani Oliveira, não foi muito diferente e os enfrentamentos para manter a mente sã exigiram grandes esforços psicológicos.
“Entendo minha experiência acadêmica dividida em etapas onde a primeira foi feita por um esforço em sentir-me pertencente ao espaço físico e ao lugar social que ele representa. Minhas preocupações eram em me defender dos possíveis ataques racistas que se apresentavam pra mim com a pergunta recorrente: ‘o que você está fazendo aqui?’, acompanhada com uma expressão de surpresa ou espanto. Com o passar do tempo, meu corpo já não gerava tanto incômodo entre aqueles que me viam cotidianamente e foram levados a compreender que eu estudava naquela instituição.
Ao mesmo tempo sinto que me autorizei a usar o conhecimento adquirido para a compreensão da realidade vivida por mim e por por pessoas parecidas.
Foi possível promover trocas qualificadas de conhecimentos, direcionei meus trabalhos e apresentações em salas para as temáticas das relações de gênero e raciais sempre buscando autoras negras que fizessem a contraposição da hierarquia de saber e elas existem!”
Além do centro de saúde mental criado pela USP e citado no início da matéria, a Unicamp mantém desde 1987, o SAPPE – Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante, que atende toda a comunidade da universidade.
Não tem jeito, saúde mental é assunto sério e combater esta prática nociva contribui para brecar a evasão e fazer das universidades espaços realmente abertos ao pluralismo.