Seletividade política apagou existência de afro-gaúchos e indígenas no RS

O dia 20 de setembro é a data mais importante do calendário cívico sul-rio-grandense. Ela faz alusão ao início da guerra civil que assolou a então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul durante o Império. Repleta de tradições criadas posteriormente ao conflito bélico, a data é também objeto de disputas por muitos daqueles que não foram – e não são – lidos como os típicos gaúchos.

Parte disso pode ser observado nas páginas da imprensa negra gaúcha desde fins do século XIX, revisitada nos anos 1970, e que chega aos nossos dias por meio de lutas que buscam, acima de tudo, garantir a cidadania efetiva por meio da democratização da representatividade, com as minorias políticas devidamente representadas nos espaços de poder.

Desde a primeira semana desse mês, temos recebido por meio da mídia uma série de tristes notícias acerca das fortes chuvas e ciclones que atingiram o Rio Grande do Sul. Esse que é o mês, por excelência, de comemorações cívicas no estado, foi marcado pela dor, mas também pela solidariedade. Essa façanha por si só já deveria servir de modelo. Mas, a relação com um dos versos do hino gaúcho que informa “Sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra” está aqui para chamar a atenção para outras façanhas desse lugar que até hoje cultua tradições inventadas em detrimento da valorização de tantas histórias de luta.

Ora, cara leitora e caro leitor, as imagens transmitidas nacional e internacionalmente acerca da tragédia no Vale do Taquari, se por um lado reforçaram a imagem de um estado formado apenas por descendentes de europeus, por outro fizeram ressoar a força da solidariedade entre os ditos iguais.

Cá entre nós, vocês não se perguntaram onde estão as comunidades indígenas, quilombolas e mesmo as pessoas negras desses locais atingidos? Ou por que tamanha comoção não serve de modelo para as tragédias que já vivenciamos em locais com a população bem mais “colorida” que a sulina? Advirto desde já que o problema não se encontra na comoção e na solidariedade, mas sim na seletividade.

No mês em que a coluna Presença Histórica aborda diferentes aspectos da cidadania, pareceu-nos fundamental olhar para o estado mais ao sul, buscando as presenças negadas e raramente selecionadas quando trata-se de mostrar imagens desse local.

Trata-se aqui de reivindicar o pertencimento aos moldes de muitos antepassados que orgulhosamente se definiam como afro-gaúchos. Foram eles que forjaram façanhas, algumas das quais servem de exemplo Brasil afora, outras nem tanto porque menos conhecidas, mas todas elas vinculadas a essa terra.

A luta pelo direito de existir dos afro-gaúchos e indígenas

Capa da Revista Tição em 1979.Imagem: Reprodução

No último dia 14 comemoramos os 190 anos da imprensa negra no Brasil. Uma iniciativa que está completamente vinculada com a cidadania, tendo em vista o objetivo comum aos jornais negros de proporcionar o conhecimento de direitos e deveres, mas também de reivindicar que os direitos pudessem ser consumados.

Em 1907, foi criado na cidade de Pelotas (RS) o jornal A Alvorada, um legítimo representante da imprensa negra brasileira. O fato de uma cidade do interior ter um jornal dessa natureza já é significativo, mas teve mais. Muito mais. A Alvorada é considerado o jornal de imprensa negra de maior circulação no Brasil, tendo em vista sua manutenção até 1965. Ainda que os quase 60 anos não tenham sido ininterruptos, o semanário pelotense teve uma longevidade única.

Observar um jornal no extremo sul do Brasil, com tamanha longevidade é uma façanha a ser celebrada. Sobretudo ao termos dimensão das tantas lutas encabeçadas pelo referido jornal, que nos anos 30 deu início a uma campanha em favor da educação e que posteriormente seria a porta de entrada dos negros pelotenses e dos arredores a primeira organização negra de alcance nacional – Frente Negra Brasileira. Não à toa o periódico foi o porta-voz da Frente Negra Pelotense, vinculada a organização nacional.

O A Alvorada encabeçou ainda a luta pelas 8 horas diárias de trabalho, divulgou notícias acerca das experiências negras em outras cidades e países, com ênfase na defesa da Etiópia quando da invasão italiana em 1935.

Destacou-se pela defesa dos direitos dos trabalhadores e do acesso à educação durante toda sua existência, sem deixar de lado a atenção com assuntos internos da população negra. Estes são alguns dos assuntos já mapeados pela pesquisa histórica, realizada a nível nacional e internacional, e que vem crescendo exponencialmente desde a digitalização do acervo do jornal e disponibilização gratuita junto à hemeroteca digital da Biblioteca Pública Pelotense.

Ainda que o A Alvorada tenha um lugar de destaque no que tange à imprensa negra gaúcha, vale destacar que esse jornal não foi o primeiro e tampouco o último, felizmente. Algo que se soma ao protagonismo do jornal O Exemplo, que circulou a partir de Porto Alegre desde 1890 e, com algumas interrupções, se manteve ativo até 1930. Este sim identificado como o primeiro do tipo no estado. Pesquisas mais recentes têm destacado uma vasta gama de iniciativas pelas cidades do interior, todas marcadas pela defesa dos direitos da população negra.

Como se pode perceber em Tição, revista que circulou anualmente entre 1978 e 1980 e que desde seu primeiro número apresentou uma outra história para o Rio Grande do Sul, em que a presença negra não estava apagada. A efervescência desse momento configurou a demanda não apenas por outra escrita da história sulina, mas também do nosso hino, que afirma “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Assim, Oliveira Silveira, que ficaria conhecido nacionalmente como poeta da consciência negra, formulou a alteração “povo que é lança e virtude a clava quer ver escravo”, proposta que até hoje provoca discussões acaloradas.

A imprensa caracterizou-se por disputar narrativas em torno de uma história oficial. Aqui a ênfase recai sobre a compreensão das gentes negras como gaúchos e gaúchas por excelência, os afro-gaúchos¸ abrindo espaço para o que conhecemos como a vida no meio rural e as experiências de quilombolas, tanto em meio rural quanto urbano.

Cabe destacar que o RS possui 146 comunidades identificadas, ainda que apenas 4 estejam devidamente tituladas. E, vale ainda mencionar que o RS é o estado que apresenta o maior número de pessoas identificadas como quilombolas na região sul, com 17.496, de acordo com o censo recentemente divulgado pelo IBGE.

Ainda que a presença quilombola no estado não seja irrisória, pouco ou nada se fala em relação a essas realidades. Um rápido exemplo ajuda a nos localizarmos. Vejamos. A tragédia que alcançou o Rio Grande do Sul no início deste mês concentrou-se especialmente na bacia hidrográfica do Taquari-Antas, que abarca prioritariamente municípios localizados no Nordeste e Serra. Nesta região há quatro comunidades quilombolas (Santos Rocha, Unidos do Lajeado, Mato Grande e Morada da Paz), sendo que duas estão localizadas em cidades extremamente atingidas, a saber Lajeado e Triunfo.

A falta de referências e informações mais sólidas alcança também as Terras Indígenas, que são em torno de 140 identificadas. Estando pelo menos 2 dentro da mesma bacia hidrográfica, a saber Mato Castelhano e Monte Caseros.

Assim, tanto as informações sobre as comunidades quilombolas quanto sobre as comunidades indígenas são de difícil acesso e quase não aparecem na grande mídia. Fazendo com que nos questionemos sobre a seletividade da preocupação e da comoção.

No entanto, essas gentes negras e indígenas seguem existindo e resistindo. Lutam por direitos e, como no caso da população negra, evidencia-se de forma mais intensa, por representação política. Como pode observar-se nas últimas eleições estaduais, em que houve pela primeira vez na história a configuração de uma bancada negra, composta por Laura Sito (PT), Matheus Gomes (PSOL) e Bruna Rodrigues (PCdoB).

Que, dentre outros feitos, tiveram papel primordial na discussão sobre os casos de trabalho análogo à escravidão e, mais recentemente, fizeram-se presentes nos locais atingidos pela tragédia ambiental e buscaram pelos grupos indígenas e quilombolas.

Não é um equívoco afirmar que o Rio Grande do Sul segue forjando narrativas e imagens para invisibilizar todos aqueles gaúchos que não são brancos. Mas, há muitas façanhas desses grupos que podem e devem servir de modelo à toda a terra que se almeja democrática, inclusiva e verdadeiramente solidária.

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