“A minha história ajuda a transformar a vida de mulheres bolivianas que vêm ao Brasil trabalhar nas oficinas de costura. Elas se tornam protagonistas de suas vidas, chegando a lugares nunca antes imaginados”, diz a peruana Soledad Requena, que sofreu na pele o preconceito por ser imigrante
Por G.LAB PARA C&A, na Revista Marie Claire
A primeira vez que saí da minha cidade para morar em outro lugar eu tinha 5 anos. Nasci em Huancavelica, interior do Peru, e mudei com a minha família para a capital, Lima, atrás de uma condição melhor de vida. No dia em que chegamos, minha mãe disse uma frase que carrego até hoje: “Lima não vai nos vencer. Nós é que vamos vencer Lima”. Ela era semianalfabeta, mas sabia sobre direito e discutia política. Foi a minha maior referência. Mesmo com 11 filhos em casa, acolhia quem chegasse de fora.
Estava no meu sangue querer lutar por um mundo melhor. Na adolescência, fui representante da minha escola num movimento estudantil contra corte de verbas que se espalhou pelo país. Escolhi cursar serviço social na faculdade, mas, logo que entrei, engravidei do meu namorado brasileiro. Eu tinha 21 anos. Quando meu filho completou oito meses, viemos morar no Brasil, no interior de Minas Gerais. Fui muito discriminada por ser imigrante; as pessoas da cidade não me aceitavam. Era fisicamente muito diferente. Achavam que eu era babá do meu filho, pois ele tinha a pele mais clara do que a minha. Uma vez, um familiar do meu ex-marido me cumprimentou e depois saiu correndo para lavar as mãos. Sofri muito tempo por isso.
Depois que meu caçula nasceu, me separei. Meu casamento foi difícil e não queria que meus filhos vivessem num ambiente violento (Soledad é mãe de Paulo César, hoje com 37 anos, e de Pablo, 31). Voltei para Lima e fiz mestrado em políticas públicas e igualdade de gênero. Em 2005, retornei ao Brasil para trabalhar na capacitação de professores da rede pública, onde dava orientação sobre a transversalização de gênero nas políticas de educação. Na
mesma época, e por anos seguidos, continuei atuando no Equador e no Peru, onde também lutei pelos direitos das crianças e adolescentes na Conferência Episcopal Peruana, um grupo ligado à Unicef.
Em 2015, conheci o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI) e fui convidada a dar suporte à equipe de um projeto do Instituto C&A, chamado Mulheres que Inspiram – uma campanha global que arrecada fundos para apoiar organizações. Eu orientava os profissionais do CAMI a olhar para a questão de gênero no trabalho com imigrantes bolivianas em situação de vulnerabilidade. Oferecendo ferramentas e informação, a iniciativa possibilita que essas mulheres que vêm à São Paulo trabalhar em oficinas de costura melhorem suas condições de vida, de trabalho e a autoestima. Em muitos casos, elas chegam sem falar português, com filhos pequenos, são vítimas de violência doméstica e do tráfico de pessoas, não têm onde morar e têm como única opção locais de trabalho clandestinos, com péssimas condições.
As costureiras bolivianas ocupam lugar importante na cadeia da moda, mas muitas vezes ainda são invisíveis e obrigadas a trabalhar na informalidade. No CAMI, elas recebem informação sobre seus direitos trabalhistas, acesso à rede de saúde pública, cursos de português, aulas de empreendedorismo e modelagem, curso de profissionalização e acompanhamento técnico às oficinas para a prevenção de acidentes.
Minha participação no projeto foi crescendo, e criei as Rodas de Conversa, encontros semanais onde as mulheres compartilham suas histórias, suas dificuldades, seus medos, ao mesmo tempo em que as incentivamos a desenvolver a autonomia financeira e o empreendedorismo, junto à estrutura do CAMI, para que rompam com o círculo do trabalho análogo ao escravo. Falamos sobre a Lei Maria da Penha e oferecemos informação e ferramentas para que as mulheres se tornem lideranças e referências para enfrentarem situações de violência, para erradicar o trabalho escravo, o trabalho infantil e o tráfico de pessoas. Essas lideranças replicam as Rodas de Conversa em seus bairros. Quando a mulher se empodera, empodera o resto da família e a comunidade.
Hoje, elas são protagonistas de suas próprias histórias, estão fazendo faculdade e abrindo suas oficinas de costura. Uma dessas mulheres saiu da Bolívia pois era ameaçada de morte pelo marido. Chegou ao Brasil com o filho pequeno e com a promessa de emprego. Mas descobriu que era vítima de trabalho escravo, em que passava 15 horas fechada na oficina, enquanto o filho estava adoecendo. Um dia, viu um panfleto do CAMI e assistiu a uma palestra em que eu contava a minha história. Começou a frequentar o Centro de Apoio, aprendeu a falar português, foi beneficiada pelo projeto Mulheres que Inspiram e, com os anos, conseguiu sair daquela situação. Virou empreendedora. Ela é uma mulher admirável, que me disse: “Quando ouvi sobre as dificuldades que passou, de conseguir se superar e transformar a dor da discriminação em gesto de solidariedade e esperança para as mulheres imigrantes, minha vida mudou”.
Essas mulheres são minha fonte de inspiração. Fui migrante em muitos momentos ao longo dos meus 60 anos de vida. O trabalho que desenvolvo reafirma meu propósito de lutar pelos direitos humanos, pela não violência e me dá vitalidade e inspiração. Comecei até a escrever um livro sobre a minha vida, quero deixar um legado de transformação para meus filhos. Essa experiência também me fez querer trabalhar com mulheres refugiadas de guerra, que chegam em situações ainda mais delicadas. Será um enorme desafio.
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