Autocuidado: a próxima fronteira do feminismo (e que deveria ser estendida a todas as mulheres)

Militância pode doer, pesar, consumir tempo e energia – é o que dizem as mulheres que estão no front do ativismo. Lutar por direitos, ainda mais em tempos de extremismos e pouca tolerância, exige delas autocuidado. Marie Claire investigou por que essa palavra ficou tão urgente hoje

POR HELENA BERTHO, da Marie Claire

Perfis anônimos, gerenciadores de senhas, navegadores alternativos, aplicativos criptografados. Esses são instrumentos básicos de navegação da influenciadora rio-pretense Jéssica Ipólito, de 26 anos. Ela precisou aprender as artimanhas da segurança digital na marra, em 2016, quando foi vítima de um feroz ataque de misoginia e racismo. Criadora do blog Gorda Feminista, começou a receber mensagens de ódio em seu site e perfis nas redes sociais. As agressões começaram com xingamentos, mas chegaram a ameaças de morte a ela e sua família. Após sucessivas denúncias de conteúdo impróprio (uma artimanha de haters para derrubar contas), seus perfis foram suspensos.

Autocuidado (Foto: Ilustração Andrea Tolaini)

Nem assim as ameaças pararam. “Passei a recebê-las por e-mail e até pelo correio em casa, então veio o medo de verdade”, diz. A partir daí, decidiu investigar as maneiras de se proteger na internet e entendeu que, em um mundo conectado, a segurança digital não é algo que se faz sozinha. “Não adianta eu ter um e-mail seguro se a pessoa para quem destino a mensagem não tem. Autocuidado tem de ser via de mão dupla”, explica.

Autocuidado, o termo usado por Jéssica, é preciso. E nunca foi tão necessário para as mulheres, principalmente as militantes. Parte da ideia de que o bem-estar físico e emocional é essencial para qualquer uma de nós e fundamental para a sustentabilidade do ativismo. “Em um mundo que caminha a passos largos para o conservadorismo, os ataques às feministas estão se proliferando, principalmente na internet”, afirma Djamila Ribeiro, ativista do feminismo negro e uma das principais propagadoras da ideia no Brasil.

Embora urgente, a bandeira do autocuidado não é nova. O conceito nasceu em 1988, quando a caribenha-americana Audre Lorde, escritora, mulher negra, lésbica e feminista, cravou: “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, um ato de luta política”. A frase é do epílogo de A Burst of Light, livro de Audre, e foi repetida muitas vezes em sua carreira, em palestras e entrevistas.

Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, um ato de luta política
Audre Lorde

Para entender como o autocuidado acontece na prática, a sérvia Jelena Dordevic, mestre em Estudos de Imigração pela Universidade de Sussex, na Inglaterra, e pesquisadora da ONG brasileira CFEMEA, em parceria com a escritora americana Jane Barry, conversaram com mais de 100 mulheres defensoras dos direitos humanos, em 45 países. Durante o ano de 2007, perguntaram a elas como exercitavam o bem-estar físico e emocional em suas rotinas. A conclusão foi alarmante: as ativistas estavam à beira do precipício emocional. “Para mudar o mundo, precisamos nos cuidar, e mais, cuidar umas das outras”, concluiu Jelena. A pesquisa virou o livro Que sentido tem a revolução se não podemos dançar? (ed. Nandyala).

Desde então, a pesquisadora trabalha no desenvolvimento de técnicas para tornar o ativismo uma tarefa menos penosa para as mulheres. Promove rodas de conversa sobre o que toca a saúde física e mental das militantes e capta recursos para organizações feministas. Neste momento, inicia uma segunda leva daquela primeira pesquisa, “para ver o que mudou nesses dez anos”. Sobre o que tem percebido mundo afora, comenta: “O espaço para a reivindicação dos Direitos Humanos está se fechando em todo o globo em virtude de uma onda fundamentalista. Com a perseguição e assassinato de defensoras, nos fortalecer é estratégico para continuarmos atuando”.

Corpo, mente e revolução
Ainda que tenha nascido no seio da militância feminista, o conceito de autocuidado não deve ficar restrito a ela. Com esse intuito, a advogada paulistana Anna Haddad, 32 anos, criou a Comum, uma iniciativa on-line e presencial de cursos e oficinas focado no “desenvolvimento completo de mulheres”. O que significa mais de 250 assinantes acompanhando textos e vídeos sobre questões como saúde autônoma, alimentação natural, sexualidade e compaixão. A Comum também promove encontros virtuais e presenciais, além de workshops e oficinas. “Chegam a mim relatos constantes de mulheres que sofreram ou sofrem abusos, outras pensando em se machucar por conta do que passam com parentes próximos ou companheiros”, afirma Anna.

“Para mudar o mundo, nós mulheres precisamos nos cuidar, e mais, cuidar umas das outras”
Sérvia Jelena Dordevic
Mulheres (@DAZZLE_JAM/Nappy _

Outro exemplo de como o conceito se aplica no cotidiano foi posto em prática pela costureira Luciana da Cruz Neves, 33 anos, moradora de ocupações desde os 4. Negra e mãe solo, ela vive na luta. Seja por moradia, seja contra a violência de gênero. Há quase uma década, é líder de uma ocupação focada em mulheres em Belo Horizonte, a Dandara, e, entre garantir a preservação do seu teto e de outras mulheres e administrar o dia a dia do lugar, sobra pouco tempo para cuidar de si.

Acontece que Luciana só foi entender que precisava olhar para própria vida quando algo especialmente doloroso se deu. Em 2016, descobriu que sua filha mais nova sofria abuso sexual de um familiar. “Me vi em pânico, perambulando pelas ruas com ela. Não sabia exatamente para onde ir. Se para uma delegacia, para um hospital. Naquele caos, foi uma mulher, uma total desconhecida, quem me acolheu”, lembra. A desconhecida fez toda a via crucis delegacia – hospital com Luciana. E só saiu do lado dela e da filha quando as duas já podiam respirar melhor.

O amparo que recebeu despertou em Luciana a urgência da sororidade. Só uma outra mulher teria a dimensão do infortúnio que ela vivia. Por isso, criou um novo espaço em sua ocupação, justamente para que mulheres pudessem acolher umas às outras. Áurea de Luta é o nome do reduto. Por lá, há treinamento para o cuidado das que sofrem com a violência de gênero e uma cooperativa de costura, onde as vítimas encontram sustento emocional e financeiro para enfim sair de relações abusivas.

O olhar para o bem-estar das mulheres também chega à iniciativa privada. O disque-denúncia da rede de varejo Magazine Luiza, através do qual funcionários podem delatar casos de violência doméstica, é um modelo disso. O serviço foi criado no ano passado, após o assassinato da funcionária Denise Neves dos Anjos, de 37 anos. A polícia acredita que ela foi morta pelo próprio marido e o choque com o ocorrido levou Luiza Trajano, dona da empresa, a pensar na iniciativa. “Achei que [a violência contra a mulher] estivesse muito longe da minha companhia. De repente essa notícia, de que uma funcionária foi morta à noite pelo marido a canivetadas. Ele também se matou, deixou um filho de nove anos. Criei com o RH o disque-denúncia, chamamos promotoras, juízas, as ONGs que trabalham com isso. Montamos um comitê para fazer com que pessoas conversassem sobre o tema, para criar um boletim para meus colegas CEOs e sugerir políticas públicas internas”, conta.

Para algumas mulheres, simplesmente poder estar com outras em rodas de conversa ou momentos de pausa já são formas de autopreservação. Foi a maternidade solo que trouxe essa percepção para Thaiz Leão, 28. “A gente cuida, cuida, cuida. A sociedade legitima esse lugar de cuidadora e não nos permite autonomia para nos cuidarmos”, diz ela. Thaiz decidiu dividir essas vivências na página Mãe Solo, no Facebook e Instagram, como forma de desabafo. A procura de outras mulheres na mesma situação foi tanta que o projeto acabou crescendo e extrapolou a internet.

Hoje, Mãe Solo é uma rede de acolhimento para mulheres que criam seus filhos sem os pais, que oferece orientações legais e também rodas de conversa quinzenais. Nessas rodas, elas se reúnem para tirar um momento para si e estar com outras que compartilham as mesmas dificuldades e angústias. E, principalmente, ter um tempo com pessoas que não sejam seus próprios filhos. “A gente se junta para combater esse lugar onde é inserida. E acabamos desafiando a norma da sociedade que é excluir as mães do convívio social e de quaisquer papéis que não o materno”, diz a fundadora.

“Estamos lutando é para viver melhor e de forma mais saudável. Lutando para ter tempo para os nossos filhos, sermos tratadas com respeito e receber salários equiparados aos dos homens. A luta tem de poder incorporar aquilo que ela procura, isso não pode ser apenas uma utopia”, conclui a psicoterapeuta Maria Lúcia da Silva. Só assim o autocuidado pode transcender o feminismo e chegar às empresas, ao governo e à casa de cada uma de nós.

 

+ sobre o tema

Nota de preocupação e repúdio

Carta Aberta à Drª Gilda Carvalho Ministério Público Federal NOTA DE...

Dia de Luta pela Saúde da Mulher e de Redução da Morte Materna

A deputada Inês Pandeló, Presidente da Comissão de Defesa...

para lembrar

Presidente eleito da Costa Rica apresenta gabinete com maioria de mulheres

San José, 26 abr (EFE).- O presidente eleito da...

Mulheres ainda se dividem entre a casa e o trabalho, aponta o IBGE

Mesmo cada vez mais inseridas no mercado de trabalho,...

Elas vão juntas: cinco candidatas e um único número na urna

Elas têm trajetórias de vida bem diferentes, algumas nem...

Mulheres agredidas por PM serão indenizadas no Rio

Ele as xingou, atacou com cabo de vassoura e...
spot_imgspot_img

O atraso do atraso

A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em...

Fernanda Melchionna lança seu primeiro livro em Cachoeirinha neste domingo; “Tudo isso é feminismo?”

“Tudo isso é feminismo?” – uma visão sobre histórias, lutas e mulheres” marca a estreia de Fernanda Melchionna, no universo do livro. A bibliotecária...

Angela Davis completa 80 anos como ícone marxista e antirracista

A obra de Angela Davis, 80, uma das mais importantes intelectuais do campo do pensamento crítico, se populariza a passos largos no Brasil, país...
-+=