Parlamentares envolvidos em corrupção empenham-se na salvação do mandato, o governo em evitar a responsabilização do presidente pelos atos que conspurcam o governo, a oposição em avançar posições no xadrez da reeleição. E o resto pouco lhes importa. Pior, quando atuam, é contra nós.
Por Sueli Carneiro
Uma emenda ao projeto de lei que prevê a reserva de vagas para estudantes negros, índios e de escolas públicas exclui dessa exigência as escolas ligadas ao Itamaraty e às Forças Armadas. A restrição serve para barrar o acesso de negros e indígenas em instituições do ensino superior historicamente reprodutoras de elites militares e diplomáticas, como a Escola Naval, a Academia Militar das Agulhas Negras, o Instituo Militar de Engenharia e o Instituo Rio Branco (do Ministério das Relações Exteriores), provavelmente a pedido dessas instituições.
O argumento é que a graduação nessas instituições conduz os formandos às carreiras que lhes correspondem no funcionalismo público, gerando reserva de mercado para esses novos segmentos. É uma preocupação que perpetua a privatização histórica desses postos para os racialmente hegemônicos. Essa limitação foi prontamente referendada pelo Ministério da Defesa, por meio do general José Luiz Halley, para quem, apesar da baixa presença de oficias negros, as Forças Armadas expressam muito claramente a sociedade brasileira e não pretendem mudar isso. Segundo ele, “é a realidade. Para entrar em nossas escolas é necessário passar por concurso muito rigoroso e a comunidade negra tem dificuldade de acesso por uma questão de desigualdade histórica.”
Segundo essa visão, desigualdades históricas deixam de ser produtos da ação concreta dos seres humanos e, portanto, alteráveis pela ação intencional dos próprios seres humanos. Elas são naturalizadas e se tornam uma realidade imutável e “imexível” em relação à qual, nesse caso, as Forças Armadas se sentem absolutamente confortáveis, posto que se recusam até a implantar iniciativas, tais como a do Itamaraty, de oferecer cursos preparatórios para alunos negros ou carentes que queiram enveredar pela carreira diplomática.
Uma realidade de desigualdade para com a qual deputados supostamente comprometidos com a construção de um Brasil para todos se apressam a perpetuar. Em São Paulo, o provável candidato, melhor posicionado nas pesquisas de intenção de votos para a próxima eleição presidencial, o prefeito José Serra, inicia a instalação de rampas de concreto “antimorador de rua”. É um projeto que tem por objetivo reduzir o número de assaltos e consumo e tráfico de drogas nas extremidades da Avenida Paulista (o cartão-postal da riqueza de São Paulo) em cujas passagens subterrâneas alojam-se os sem- teto.
O padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, definiu com precisão essa iniciativa como mais uma ação higienista do prefeito Serra. Segundo ele, “essa política está ocorrendo em áreas nobres e centrais, para que não haja a convivência com as pessoas da rua e dar a falsa impressão de que o problema não existe”. O general apregoa a imutabilidade da realidade histórica da desigualdade. O prefeito resolve a iniqüidade social escondendo-a da cena pública para preservar o cartão postal da cidade. No lugar de uma política de habitação para o povo de rua, a resposta do poder público é a ocultação da realidade social que deveria envergonhar a todos.
Há menos de dois meses, numa ação desesperada de uma ONG paulista diante do abandono da população de rua, foi construída, ao lado de um dos shoppings da cidade, uma casinha de madeira de um metro e meio de altura para abrigar um sem-teto doente e portador de distúrbios mentais, produzindo uma estranha demanda de outros moradores de rua pelas casinhas rapidamente apelidadas de casinhas-de-cachorro. Um dos pleiteantes as defendia dizendo: Para albergue eu não vou. Lá é que nem cadeia, (…) A casinha é boa, dá para guardar as nossas coisas. Esse é o estado da arte das políticas públicas para esse segmento na cidade de São Paulo.
É hora de algum parlamentar, que ainda guarde algum respeito por seus eleitores, elaborar projeto de lei que nos liberte da obrigatoriedade do voto. Seria o mínimo de consideração devida aos brasileiros diante da evidência cada vez maior de que a atividade política é um fim em si mesma, que atende prioritariamente aos interesses corporativos dos políticos que vivem a maior parte de seus mandatos de costas para o país real atormentado por toda sorte de mazelas pelas quais eles são os grandes responsáveis. Ao desencanto e frustrações que impõem à sociedade, soma-se o sentimento de impotência da maioria dos cidadãos para exercer o seu dever e direito de monitoramento efetivo sobre os seus atos, para assegurar a punição exemplar de envolvidos nos fatos tenebrosos de que se tem notícias dia sim e outro também e, sobretudo, para destituí-los a qualquer tempo em que se evidenciem esses comportamentos.
Sem voto obrigatório poderíamos lhes dizer que, assim como nós, eles também estão por conta própria e devidamente deslegitimados em suas ações e que, portanto e enfim, não mais atuam em nosso nome.