‘Ser mulher negra e artista é estar no final da cadeia alimentar’

Isabél Zuaa, atriz portuguesa de origem africana, estrela três filmes recém-lançados no Brasil

Enquanto se prepara para uma turnê por Portugal e África com o espetáculo “Aurora Negra”, Isabél Zuaa acompanha de Lisboa a estreia nos cinemas brasileiros de três longas em que empresta seu talento para personagens marcantes.

A atriz e performer portuguesa de ascendência africana interpreta a mãe do líder abolicionista Luiz Gama (1830-1882) em “Doutor Gama“, de Jeferson De.

“É uma honra fazer uma personagem forte de uma mulher que luta pelo seu povo e por isso é afastada do filho.”

Isabél também pode ser vista em “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, exibido no Festival do Rio. O papel de uma mulher moçambicana que trafica pedras preciosas lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado de 2020.

A trinca de estreias em meio à pandemia se fecha com “O Novelo”, de Claudia Pinheiro, que integrou a mostra 49° Festival de Gramado, realizado de 13 a 21 de agosto, em formato virtual.

“Lançamentos pandêmicos são angustiantes”, diz Isabél, em entrevista por videoconferência de Lisboa, onde mora. “Gosto de estar na sala de exibição, sentir o público e ver o filme em tela grande.”

Apesar da distância, a portuguesa onipresente nas telas brasileiras comemora o momento especial de uma carreira que ganhou projeção internacional com “Joaquim (2017)”, de Marcelo Gomes.

Da esq. para dir., o ator Júlio Machado, a atriz portuguesa Isabél Zuaa, o diretor Marcelo Gomes e o ator Welket Bungué durante o 67º Festival de Cinema de Berlim pelo filme “Joaquim” (Foto: Tobias Schwarz/ AFP)

“É uma alegria imensa fazer papéis tão distintos. Nenhum filme tem a ver com o outro. Cada um reverbera coisas diferentes, trazendo questões humanas, coletivas e sociais para nossas vidas”, afirma a atriz.

E uma destas temáticas é o papel do feminino dentro e fora das telas. “Ser mulher, negra e artista é estar no final da cadeia alimentar em termos teóricos e práticos, em oportunidades”, afirma.

Para Isabél já não era sem tempo que uma atriz com o seu perfil fosse protagonista de tantos filmes importantes.

“As mulheres em geral e as negras, especificamente, sustentam essa pirâmide. Cuidando, limpando, alimentando e agora também entretendo e ocupando outros lugares, como na sétima arte.”

Um processo de reconhecimento de talentos negros no cinema, que já aconteceu a duras penas na dança, na música, lembra Isabél.

“As vozes das mulheres negras sempre foram unânimes, mesmo quando as cantoras americanas de soul e jazz não conseguiam entrar pela porta da frente dos lugares em que se apresentavam.”

A atriz celebra o fato de testemunhar negras como ela entrando pela porta da frente em produções cinematográficas no Brasil e além-mar. “Estamos não só atuando, mas dirigindo, fotografando, dando consultoria. Isso é muito importante. As histórias ficam mais potentes.”

Ela protagoniza essa potência ao trocar Lisboa pelo Rio em 2010 para fazer um programa de intercâmbio artístico na UniRio (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “Eram cinco meses que viraram sete anos e meio”, relata Isabél, casada com um brasileiro.

A atriz Isabél Zuaa (Foto: Miguel Domingos/Divulgação)

Na faculdade, causava surpresa o fato de ser negra, em meio aos demais colegas de Portugal todos brancos. Era apresentada como “a amiga de Angola e da Guiné”. No imaginário dos brasileiros, não havia uma portuguesa com as minhas características.”

Filha de mãe angolana e pai nascido na Guiné Bissau, Isabél diz que foi impactante sob vários aspectos a experiência de viver em uma terra miscigenada como o Brasil.

“Eu sentia que minhas diferenças eram positivas. Assim como o povo brasileiro, sou filha da mistura e aqui me senti em casa. Encontrei um lugar de partilha de experiências e da minha ancestralidade.”

Troca que passava por vivências com danças como Kuduro, de Angola, e Funaná, de Cabo Verde. “A gente fica com autoestima das nossas origens. É lindo isso.”

A inserção no circuito artístico brasileiro se deu antes pela dança e pelo teatro. Foi após assistir vídeos e um curta com performances de Isabél que Gomes a convidou para fazer “Joaquim”.

“Ele procurava uma portuguesa negra que falasse uma língua africana”, conta a atriz que na época usava também o sobrenome Martins.

“O diretor achou que eram duas atrizes até perceber que era a mesma Isabél”, diverte-se ela, que passou a usar o Zuaa como nome artístico em definitivo.

“Fui resgatar este segundo prenome africano da minha avó”, diz a intérprete de Preta no filme histórico sobre o líder da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier.

“O que mais me interessou foi poder construir uma narrativa de uma mulher negra que na condição de escravizada impulsiona um homem branco, Tiradentes, a entender o seu lugar e as opressões”, afirma, sobre a líder quilombola.

E desde então Isabél emendou um filme após o outro e se arriscou até no gênero de terror em “As Boas Maneiras”, de Marco Dutra e Juliana Rojas.

Veio também o reconhecimento em premiações nacionais e internacionais. “Enquanto atriz de teatro estava acostumar a trabalhar e trabalhar. Quando comecei a receber esses prêmios, eu pensava: ‘Mas eu trabalhei normal’. Agora, já estou acostumando e sou extremamente grata.”

A portuguesa contabiliza mais de 15 produções cinematográficas brasileiras no currículo, entre elas “Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky, épico sobre Dom Pedro 1°ainda sem data de estreia prevista.

A atriz deve retornar ao Brasil neste semestre, enquanto agurda a reestreia de “Aurora Negra” no Teatro Nacional D. Maria 2ª, em Lisboa. Programa ainda uma turnê por outras palcos em Portugal e Cabo Verde .

“Em 175 anos de história do Teatro Nacional, esta é a primeira criação de elenco e direção totalmente negra”, explica Isabél, sobre o espetáculo que tem como tema o afrofuturismo, encenado com duas amigas.

“É o resgate positivo da nossa ancestralidade, da força, memória e intuição que se projetam num futuro de liberdade física e espiritual”, define.

Nesta aurora de empoderamento negro para além dos palcos, a atriz passa em revista o racismo em todas as latitudes. “Sofremos da síndrome das boas pessoas, como eu chamo. Ninguém quer assumir que é racista, machista, homofóbico”, diz Isabél. “A gente é tudo isso.”

Para a atriz, a desconstrução do preconceito estrutural passa por admiti-lo. “Temos que nos desconstruir. Todo mundo. Não Interessa cor ou origem. Fomos criados e formados dentro de barreiras e opressões. O mais lindo e mais potente é aceitar nosso erro e tentar transmutá-lo.”

Na primeira semana no Brasil, ao passear pelo Rio com colegas da faculdade, a portuguesa se deu conta de que os corpos que estavam vulneráveis nas calçadas eram semelhantes ao dela.

“Quando você vê aquilo, fica em alerta. Passa a ter uma atenção felina, porque o seu corpo pode estar em perigo”, recorda-se.

Viu, com espanto, que a exclusão da população negra estava normalizada em terras brasileiras. “Foi um choque perceber como as pessoas não se afetam com aqueles corpos nas ruas.”

Em contrapartida, diz ela, o Brasil foi o lugar que melhor a recebeu. E de quebra lhe estendeu o tapete vermelho.

“Isabel é uma grandeza de artista e de pessoa”, diz o diretor Jeferson De, que a escalou para o principal papel feminino de “Doutor Gama”.

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