Em fevereiro do ano passado, a banda paulista Liniker & Os Caramelows anunciava sua separação após cinco anos de carreira, dois álbuns, uma coleção de shows dentro e fora do Brasil, uma indicação ao Grammy e uma multidão de fãs.
Na época, o grupo fez questão de enfatizar que aquilo não era nem um hiato, nem um fim —ou pelo menos não necessariamente. Era o início de um ciclo, no qual haveria um rompimento que possibilitaria novos trabalhos em parceria no futuro, diziam os músicos.
Ainda durante o anúncio, a banda prometeu uma turnê de despedida para os meses de junho e julho daquele ano. Mas o que eles não esperavam, claro, era a chegada de uma pandemia.
Diante das incertezas provocadas pelo coronavírus, a vocalista Liniker e os Caramelows —Rafael Barone (baixo), Péricles Zuanon (bateria), Renata Éssis (backing vocal), William Zaharanski (guitarra), Éder Araújo, (saxofone), Fernando TRZ (teclados) e Marja Lenski (percussão)— revelaram em agosto que a ideia da turnê estava, assim, descartada.
“Eu estava precisando de um repouso ativo para entender tudo o que estava acontecendo. Quando me lancei tinha apenas 19 anos e, de repente, muita coisa aconteceu”, diz Liniker, que acaba de lançar “Índigo Borboleta Anil”, seu primeiro álbum solo. “Esse período dentro de casa fez eu me reconectar comigo depois de anos tão intensos rodando o mundo com os Caramelows.”
O disco, que chega às plataformas digitais nesta quinta (9) e marca uma nova fase na carreira da artista, deve afagar a ansiedade daqueles que, desde a separação da banda, frequentemente questionam Liniker sobre novas canções. A paulista brinca que durante esse período a pressão por lançamentos “só não foi maior do que a sentida pela Rihanna”, cantora pop americana que está há cinco anos sem álbum novo e virou meme entre os fãs.
“É um disco de amor próprio, em que precisei entrar em mim e me reconectar com tudo de uma forma muito íntima. Tive que cuidar da minha criança interior e ainda estou cuidando”, diz a cantora. “O afeto é um espaço muito difícil para as pessoas pretas. Desde criança, as paixões viscerais são sempre pelo outro e comecei a me questionar quando eu seria visceral comigo mesma. E isso não é ser egoísta. É apenas se amar, se cuidar e se ouvir.”
“Índigo Borboleta Anil” é, nas palavras dela, uma grande festa num quintal repleto de negritude. “É um groove que sempre esteve no meu corpo. A sensação é de que estou cantando no meu quintal de casa.”
Com 11 faixas, a obra vai além do soul e R&B pelos quais a paulista já é conhecida e adere também ao pagode, samba rock, samba-enredo, salsa, zouk, charme, MPB e muito jazz. As letras partem de cartas antigas nunca enviadas, reflexões, homenagens e memórias.
Para a artista, “Índigo Borboleta Anil” é uma fonte de celebração às vidas pretas e de reencontro com si própria, o que fica evidente no tom nostálgico das letras e arranjos das canções. Em “Lalange”, por exemplo, ouvimos detalhes de um sonho em que ela visita a creche onde estudou, em Araraquara, vê colegas de infância e busca pela Liniker garotinha, que não aparece.
“Acho que já me senti muito distante da minha criança interior, mas estou num processo de cura para me reconectar com ela. O sonho de ‘Lalange’ aconteceu mesmo. É uma faixa triste e, de alguma maneira, uma conexão com a Mirtes [Renata Santana de Souza], a mãe do Miguel [Otávio]. Estamos cansadas de chorar por mortes de crianças pretas”, diz Liniker, citando o caso do garoto de cinco anos morto após cair de um prédio de luxo quando deveria estar sob os cuidados da patroa de sua mãe.
Esse tom do diálogo entre passado e presente também está contido nos próprios estilos que mergulha há anos, explica a cantora. Desde a infância, ela frequenta rodas de samba, festas de black music, bailes periféricos e teatralidades.
“Faço o que faço porque desde sempre fui introduzida na arte”, conta. “Tive uma infância muito sofrida, minha mãe sempre trabalhou muito, criou eu e meu irmão sozinha, mas ao mesmo tempo nunca deixou faltar essa alegria festeira dentro de casa.”
Em meio à crescente onda conservadora que se instala no Brasil, o primeiro álbum solo de Liniker serve ainda, segundo ela, para fazer os ouvintes dançarem sob “um groove de sol em tempos nebulosos”.
Produzido desde 2019, quando a cantora ainda mantinha a parceria com os Caramelows, “Índigo Borboleta Anil” traz também participações de nomes como Milton Nascimento, DJ Nyack, Tulipa Ruiz, Tássia Reis, Orquestra Jazz Sinfônica, Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz.
Não é de hoje, porém, que Liniker produz sob vastas referências de textura musical. Seja nos gêneros, nas parcerias ou estilísticas das letras, seus trabalhos ganharam destaque por uma cadência potente, somada ao seu vocal grave e —simultaneamente— suave. Apesar disso, a cantora afirma que é constantemente reduzida ao fato de ser uma mulher transgênero, o que lhe causa cansaço.
“A música é o que me dá trabalho, é no que me engajo e o que me dá sustento. Mas às vezes me colocam num lugar como se eu só falasse sobre ser LGBTQIA+. Não se importam com a qualidade da minha produção”, diz a compositora. “Me sinto também cansada das pessoas falarem que o meu jeito de escrever é difícil. Eu estou escrevendo o que eu sinto vontade. Os outros é que precisam aprender a ouvir.”
Além de ser colocada numa caixinha abafada LGBTQIA+, a paulista reclama da pouca valorização preta na indústria musical. “A gente sempre produziu diamantes e continuamos produzindo coisas que não são notadas por padrões e lugares que desqualificam o que fazemos. É por isso que sinto necessidade de mostrar toda essa abundância rítmica. A gente merece.”
Agora, com o lançamento do primeiro álbum solo e meses depois de protagonizar a série “Manhãs de Setembro”, do Amazon Prime Video, a artista diz ter interesse em novas jornadas como atriz e que não vê a hora de subir ao palco novamente —e desta vez, cantando “Índigo Borboleta Anil”.
ÍNDIGO BORBOLETA ANIL
- Quando A partir de 9 de setembro, às 19h
- Onde Nas plataformas digitais
- Autor Liniker
- Gravadora Altafonte Brasil