Sérgio Camargo deve cair!

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

A última fala de Sérgio de Camargo referente ao assassinato de Moise Mugenyi Kabagambe, fez ressurgir as mesmas indignações de sempre contra o atual gestor da Fundação Cultural Palmares, as mesmas falas e indignações, as mesmas revoltas e promessas de ações imediatas contra os desmandos e absurdos, mas que ao final nada produzem de fato. Pois ele continua exercendo seu mandato de destruição e desvalorização das políticas públicas de preservação e defesa das culturas negras no país. Um processo político consciente e em acordo com o ideário ultraconservador e racista que se fez eleito no último pleito presidencial em 2018. Portanto a escolha de Camargo para a Palmares em 2019, não se deu por acaso. Mas sim enquanto realização de um projeto político articulado e sofisticado de impedimento ao prosseguimento das implementações de práxis institucionais governamentais que combatiam diretamente nossas heranças escravocratas e a contemporaneidades dos atos racistas que não cansam de manifestar-se em nossos cotidianos.

Nesse sentido, e que não se esqueça, o atual presidente do Brasil, assim como os seus apoiadores, fez ataques constantes aos movimentos negros no Brasil, desmerecendo sistematicamente as bandeiras políticas antirracistas e socialmente igualitária destes. Assim como ao seu exercício e de defesa da negritude. Sempre com a prerrogativa de que tais características destes movimentos seriam antibrasileiros, contrários à “nossa” unidade nacional e identitária enquanto povo. Para isso, imputando a toda e qualquer manifestação contra o racismo, o caráter de “vitimismo”, e a marca de “racismo reverso”. Dessa forma negando de fato a existência do racismo em nossa sociedade e classificando como “perigosos” e “vagabundos” a todos que se opõe a essa – considerada por nossos grupos racialmente-racialmente hegemônicos – “verdadeira” essência civilizatória, e racialmente democrática do conjunto social brasileiro.

Sérgio Camargo atua como agente, um corpo (negro) vivo de desestabilização e descrédito ante uma representação política e social que causa inúmeras confrontações aos setores sociais mais conservadores e sua busca pela manutenção dos privilégios raciais e sociais que nos caracterizam enquanto sociedade desigual e discriminatória. Perversa nas desumanidades diárias que compõe as relações de poder no Brasil. Camargo é o símbolo perfeito para essa lógica senhorial que – ontem, hoje e sempre? – nos governa, pois é a representação viva de um sujeito humano pertencente a um grupo historicamente oprimido e dominado, que defende piamente os valores e os ideais de seus opressores. É a incorporação personificada das práxis e simbolismos que discriminam, ferem e, literalmente, mata aos seus. Exemplo de pessoa que acaba instrumentalizada pelo próprio mal que nega existir, incapaz de combatê-lo, sem perceber tornando-se renegado ao pleno exercício e reconhecimento de sua própria humanidade. Não passa de um corpo negro, esvaziado de valores próprios, saberes, potências transformadoras e historicidades. Tal qual peça de tabuleiro, um peão movido e sacrificado de acordo com as vontades e interesses de quem dita as regras da partida. 

Suas séries de absurdos, desde que assumiu os destinos da Fundação Palmares são praticamente incontáveis, não sendo exagero a percepção de que ocorre, semana após semana, sempre uma fala sua, ou decretos e providências oficiais da fundação que não sejam realizadas no sentido de dar vazão, prosseguimento ao projeto de destruição do legado histórico das lutas e causas negras que se encontram simbolizadas e gestadas na Palmares. Um passado e presente de lutas que não pode mais ser “permitido” ou “tolerado” em um país em que suas pretensas elites sempre enxergaram suas populações mais pobres, em especial as negras, como “não cidadãos”, serviçais de fato, sem direitos de nenhuma espécie, que nos últimos tempos não sabem mais ficar nos “seus lugares” devidos de subalternidade. 

São ações históricas e politicamente negacionistas, que formam um mosaico cada vez maior, em que esse projeto nefasto de poder avança, mais em mais, em direção ao sucesso final de sua empreitada ideológica. Em que a escolha do próprio Sérgio Camargo foi (é) uma das táticas mais eficazes dessa lógica que rege os que almejam destruir as ações e impactos gerados pelos movimentos políticos afro-brasileiros ao longo de sua história.  Pois trabalhamos com a convicção de que a escolha de Camargo para a Palmares se deu, como ação para constranger e dificultar a oposição sistemática e efetiva dessa parcela significativa e fundamental da sociedade política civil nacional, pelo fato dele ser filho de Oswaldo de Camargo, uma das personalidades históricas e referenciais da negritude brasileira. Ícone do movimento negro e figura seminal para gerações e gerações de intelectuais e militantes negros a, pelo menos, seis décadas. Coloco e reafirmo essa questão pelo mal-estar que setores das representações políticas afro-brasileiras enfrentam para se opor em prática, de maneira agressiva e confrontativa, aos descaminhos perpetrados por essa fundação governamental nos últimos quatro anos.

É perceptível que várias ações ou atitudes políticas mais intensas não são executadas, assim como ações e manifestações públicas de maior vulto e constância, não se realizam com a intenção de não se fazer atingir a pessoa e o legado de Oswaldo de Camargo. Um cuidado e carinho para sua pessoa que o próprio filho não demonstra. Uma postura respeitosa e digna para um ser humano tão grandioso como ele. E que deve ser louvada em todos os sentidos. Mas que se coloque, enquanto reflexão e debate, que em quatro anos de pesadelo na Palmares, é inadmissível que os setores políticos e culturais negros não tenham constituídos ações concretas e efetivas para se desgastar, confrontar, derrubar o serviçal daqueles que se deliciam e divertem-se com as nossas dores, sofrimentos e mortes.

O respeito a obra e pessoa de Oswaldo de Camargo não pode ser escudo para essa falha grave, latente das negritudes brasileiras nessa batalha atual, contemporânea, contra uma das faces mais gritantes do racismo estrutural brasileiro. Pois formalismos – como petições, abaixo-assinados, ações judiciais, manifestos – se mostram simplesmente ineficazes. São sem dúvidas importantes, pois representam não estar havendo uma omissão a realidade que nos cerca, mas não se mostram eficazes ao desafio que nos é posto! Não pode haver pudores e meio termos, com quem representa e executa, a contento, projeto de apagamento e de morte das heranças e contemporaneidades das populações afro-brasileiras. Pois é isso que está em jogo, pois é isso que está em prática diante de nossos olhos.

Por isso considero haver a necessidade de que o movimento negro brasileiro, reveja urgentemente essa sua postura, essa sua posição, pois ficar esperando que eventuais mudanças nas próximas eleições presidenciais possam representar uma alteração no rumo atual da política nacional é um erro crasso, que pode trazer consequências ainda mais graves do que as que já estão em evidência. Do que, as que já afetam diretamente – aumento dos assassinatos e de violências contra as populações afrodescendentes no Brasil, inclusive perpetrados pelos diferentes poderes institucionais e pelas diferentes estruturas e esferas políticas estatais – o dia a dia das populações negras em nosso país. A situação atual impele, ações políticas mais concretas e diretas, abertamente e publicamente insurgentes e insolentes contra tudo isso que aí está e parece se consolidar cada vez mais, sem controle ou pudor algum!

Realço que esse apelo a uma mudança da práxis política a gestão de Sérgio Camargo se faz de fato aos setores do movimento negro que em sua maioria são opositores a atual gestão palmarina e ao ideário que ela representa. Pois acredito que se deve colocar que existe uma parte do movimento negro que é conservadora e que apoia, mesmo que não publicamente, os rumos políticos dirigentes dessa entidade governamental. Sem falar nos setores do ativismo negro que se colocam como “nem esquerda, nem direita”, mas gastam sua voz e ação política para atacar os setores do movimento negro filiados a agendas gerais políticas mais progressistas, ligadas ao campo das esquerdas, por vezes desqualificando lideranças negras deste campo ideológico com argumentações das mais absurdas e pejorativas. Enquanto não manifestam uma palavra de desacordo, não emitem um único som e muito menos desagravos ou confrontações públicas a setores (ultra) conservadores dos campos intelectuais e políticos negros, não havendo praticamente nenhuma manifestação, nem mesmo formalistas, contra declarações e ações políticas que acabam por subsidiar as reproduções de nosso racismo estrutural e das ideologias supremacistas e eugenistas que o sustentam. Situação que se comprova quando vemos os ataques que sofrem intelectuais negros como Sueli Carneiro e Silvio Almeida quando manifestam seu desagravo ao genocídio em curso das populações negras no país, ao mesmo tempo em que seus detratores, regozijam-se em silêncio hipócrita, vergonhoso e colaborativo, diante de falas e ações de pessoas como Fernando Holiday, além do próprio Sérgio Camargo. A estes que se revelam implacáveis perante alguns e as suas lutas políticas, mas se calam ante aos ataques proferidos as conquistas e avanços da militância negra nas últimas décadas no Brasil, e não movem uma grama contra a política de desmonte da Fundação Cultural Palmares, eu nada espero, pois são fiéis agentes do caos que nos rodeia. Realidade que acredito torna ainda mais urgente uma mudança da práxis política de grande parte do movimento negro brasileiro, pois, caso contrário, insanidades como o uso do colorismo enquanto definidor de quem é ou não negro(a), a recuperação e valorização da figura da princesa Isabel enquanto redentora da escravização negra no país, ou a cooptação de Luiz Gama como símbolo de uma “verdadeira negritude conservadora, não consigam se propagar – mais ainda – por entre algumas vertentes das militâncias políticas ou intelectualidades de nosso país. O que acabaria por fortalecer e atender aos interesses de desacreditar e combater as políticas antirracistas e libertárias dos movimentos negros no Brasil.

E para não haver dúvidas, ou interpretações outras, situo que não existe um modelo ideal ou definido de negritude, de militância negra. Aliás, a própria organização política e cultural negra no país se dá de maneira coletiva e sistematizada. Marcada por uma pluralidade de diferenças ideológicas, mas com a diferença que estas se davam de maneira pública, assumidas. Não havendo negação de que socialmente ocorria uma inferioridade da população negra em meio a sociedade brasileira, mas sim ocorrendo uma diferença de percepções do porquê dessa realidade, e de como se podia superá-la. Diferente dos atuais setores conservadores do movimento negro que além de negar a existência do racismo, apregoam única e exclusivamente ao próprio negro as culpas e consequências de suas dores e agruras. Culpando as vítimas de seu próprio sofrimento e não o Sistema em que se encontram, e muito menos as elites dirigentes deste. Dessa forma atuando por vezes como as primeiras, e as mais aguerridas, linhas de defesa dos interesses e valores daqueles que vivem e se mantem no poder através da morte daqueles aos quais ele (re)nega fazer parte e a defender!

Considerações Finais:

Em outras palavras, Sérgio Camargo possuí o direito de ser ideologicamente quem ele quiser, de negar ou não valorizar o legado de seu próprio pai nesse processo e de optar em se postar ao lado do ideário, das concepções ideológicas que acredita lhe satisfaz enquanto ser humano. É equivocado e racista querer modular, condicionar como ele deve ser, agir e pensar, sem direito ao exercício da contrariedade, do contraditório humano. Assim como também é racista culpar Oswaldo de Camargo pelas escolhas e caminhos de seu filho. Que cada pessoa percorra os passos que escolheu para si próprio… Por isso eu não combato e desprezo Sérgio Camargo por sua liberdade de escolha em ser um negro conservador e alienado. Eu o combato e o desprezo, com todas as minhas forças, não pelo seu conservadorismo, mas por ele defender e executar políticas de morte contra o seu próprio povo, por ele defender, proteger de maneira cordata, submissa aos que nem o respeita de fato enquanto ser humano. Eu combato a ignorância e ódio a que ele se presta servilmente…

Sérgio Camargo é filho ingrato e alienado. Que acaba por depreciar e renegar a obra e legado do próprio pai. Sem dúvida! Mas não deve ser confrontado e desqualificado por isso, ou essencialmente por isso. Mas, sim, ser colocado em xeque por se postar a serviço de nossas senhorias patriarcais, de nosso arcaísmo histórico e social. Ele deve ser enfrentado e derrotado politicamente, pura e simplesmente, pelas consequências de suas ações políticas. Mas quando eu não tomo tais ações por pudores em não invadir uma situação particular-familiar, a decisão política que o colocou como presidente da Fundação Palmares se revela cada vez mais acertada e certeira em seu efeito paralisante em meio ao movimento negro brasileiro.

O rodapé da história, mais cedo ou mais tarde, é o que espera a esse servo da casa-grande, tal quais a tantos que vieram antes dele e que nos momentos de tensão e conflitos, ante as mudanças geradas pelos ventos impulsionados da História, eram abandonados ao próprio destino, a própria sorte, sozinhos e desamparados ante as certezas falsas que ruíam a sua frente… Esse será o seu lugar na história, de insignificância e vergonha, mas que não deve ser apagada e nem escondida, muito menos minimizada, mas lembrada na medida exata para que não volte mais a se repetir! 

E para que tal realidade se materialize o mais rápido possível, se faz necessário enfrentarmos de fato esse racismo maldito que nos mata, mais do que nunca, aos montes, como se fossemos moscas. Nos rearticulando e reagrupando enquanto força política coesa e unida – sendo que isso não significa escamotear ou negar nossas divergências – em prol dos interesses comuns e direitos da população afro-brasileira, visando a derrubada de Sérgio Camargo! Não há mais escapatória quanto a isso, nem há mais limites a serem tolerados! Sérgio Camargo deve cair!

Não estamos com isso promulgando que todas as questões envolvendo o racismo brasileiro e suas consequências nefastas as populações negras no estariam resolvidas. Longe disso, muito longe disso… Mas que seria uma resposta a tantos ataques que tem sido repetidos contra as lutas antirracistas e pró negritude no Brasil, não há dúvidas. E seria também uma ação política que romperia essa inércia, esse jogo de espera que caracteriza os movimentos negros nos últimos anos em relação ao posicionamento do Sérgio Camargo enquanto gestor mor da Fundação Cultural Palmares, como representante simbólico de um projeto contemporâneo de extermínio das lutas e historicidades das resistências políticas e culturais afro-brasileiras e de suas negritudes insurgentes.

Eu não tenho medo de Sérgio Camargo, muito menos do que e de quem ele representa! E você? Camargo cai/Palmares fica!”, enquanto grito de guerra e manifesto público de nossa não conformidade e aceitação ante tudo isso que aí está e nos mata! Pois não pode haver medos, temores ou pudores enquanto somos mortos, não pode haver, não pode mais haver…   

Sérgio Camargo deve cair!


Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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