– Fonte: Ilustrada –

O equilíbrio entre “vir de baixo” e “estar por cima” transforma-se em tragédia individual

 

Foto: Divulgação / Globo Filmes 

COM MUITA categoria, e sem espírito de pilantragem, o documentário “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei” faz com o espectador aquilo que o cantor fazia com o público: leva-o de um lado para o outro, balançando para a esquerda ou para a direita, conforme a música.

Durante a primeira metade do filme, não há quem não se renda ao charme de Simonal. Mas a palavra “charme” não expressa bem suas qualidades.

Um cantor como Yves Montand, por exemplo, tem o maior charme do mundo. Seduz o público com uma mistura de gentileza com despreocupação, de muito magnetismo com certo desligamento também.

Mas Simonal parece “metido” demais para ser charmoso; está tão convicto do próprio sucesso que não se curva à necessidade de “seduzir” o público.

Age como se todo mundo já estivesse seduzido. Ele surge no palco como se desfrutasse de um privilégio -o de ser Simonal- que, generosamente, resolve então oferecer à admiração dos espectadores. As pessoas não ficam apenas encantadas com o cantor: parecem gratas a ele, simplesmente porque Simonal, como um príncipe, deu-se ao luxo de aparecer.

Mesmo nas cenas a que o passar do tempo confere uma aura de ridículo (Simonal dançando o cha-cha-cha, por exemplo), a superioridade do cantor não cede um milímetro. Uma espécie de soberania psicológica parece autorizá-lo a fazer qualquer bobagem.

Um silêncio de incredulidade e de admiração se impõe na sala do cinema quando se alcança o ponto alto dessa primeira metade do filme. Numa cena histórica, vemos Simonal cantando ao lado de ninguém menos que Sarah Vaughan.

E é a grande diva americana quem parece quase uma caloura encabulada, mal e mal ocupando o palco diante daquele brasileiro que, sem nunca ter aprendido inglês, conversa com ela com uma intimidade, com uma autoconfiança irresistíveis.

O lugar muito específico da “pilantragem” de Simonal, entre as décadas de 60 e 70, talvez se explique a partir desse encontro entre a jazzista americana e o mulato carioca.

O tropicalismo exacerbava, por assim dizer, o nosso próprio exotismo -fazendo da cultura brasileira, com suas bananas, carnavais e Chacrinhas, uma espécie de caricatura crítica daquilo que os americanos viam em nós, através de Carmen Miranda e do Zé Carioca.

No “patropi” de Simonal, o tropicalismo se inverte. Negro sem ser sambista, namorando loiras e passeando de carrão no Leblon, é como se ele fosse um grande “entertainer” americano “tropicalizado”, “canibalizado” pelo ambiente carioca. Ele açucarou a imagem (que intimidava os brasileiros de 60) de um negro no topo da pirâmide social.
O que ele tinha de “metido” e arrogante, aos olhos da época, era contrabalançado por essa atitude de deboche, de não estar levando o papel a sério, que é tão clara nas suas apresentações. Não por acaso, ele cantava músicas tradicionais, como “Meu Limão, Meu Limoeiro”, com ginga americana.

O equilíbrio entre “vir de baixo” e “estar por cima”, obtido genialmente por Simonal em sua carreira, transforma-se em colapso ético e em tragédia individual depois.

A segunda metade do filme tem seu ponto mais impressionante no depoimento do antigo contador de Simonal. Torturado no Dops a mando do cantor, é hoje um homem velho e pobre; e o espectador, sensibilizado pelo implacável ostracismo de mais de 20 anos sofrido pelo astro, sensibiliza-se igualmente pelo destino desse cidadão anônimo, que os diretores do documentário tiveram o mérito e a sorte de redescobrir.

Julgar é fácil, ter pena é fácil, e sem dúvida é mais difícil perdoar alguém que, ao que parece, não teve o senso político ou a disposição de arrepender-se a tempo. Pensando nos inúmeros e muito calibrados depoimentos do filme, acho que Simonal associou o seu sucesso profissional a uma atitude de onipotência; andar de Mercedes era equivalente a se dizer favorável à ditadura, amigo dos homens do SNI… Não era isso, afinal, estar no alto da pirâmide?

Ensinaram-lhe que não. Uma pessoa mais equipada politicamente talvez tivesse meios de reconfigurar a própria imagem. Isso não aconteceu; depois de tanto sucesso, Simonal teve de voltar para o lugar de onde veio: o lugar de baixo. Mas não sem ter marcado, também, sua presença na história da música (e da sociedade) do Brasil.

 

Geledés Instituto da Mulher Negra

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