Sobre o filme Corra! e a constante descolonização do nosso pensamento

Corra! para muitos não passará de um suspense, mas na verdade trata-se representação do terror psicológico e social vivido por negros todos os dias em uma sociedade branca, que acredita na sua superiorioridade e que utiliza de mecanismos para dominar pessoas negras. Mecanismos estes que são utilizados conforme as necessidades de cada negro: ora de afeto, como mostrado no filme, em relações interraciais doentias; ora sociais que, não hipnotizam a pessoa negra, mas as condicionam para afundarem-se na anulação de si e aceite de condições precárias de trabalho, moradia, saúde, entre tantas outras coisas. Para além de uma crítica social aos brancos, o filme também faz uma crítica a pessoas negras que ainda veem em pessoas brancas o padrão do belo, da salvação, da ascensão social, da bondade e clemência por relacionar-se minimamente bem com pessoas negras.

Por Gabriela Seixas para o Portal Geledés 

O ‘branco desconstruidão’ aparece nas primeiras cenas com a família da namorada branca, onde vemos uma série de estereótipos sendo empregados ao corpo do personagem principal, Chris (Daniel Kaluuya), e a negação de seu pensamento critico e outras habilidades que não ligadas a sua força e estrutura corporal. O não-lugar, ou melhor dizendo, lugar de subserviência, que pessoas negras por herança de uma sociedade escravocrata são sempre vinculadas em famílias brancas, com a desculpa de “serem parte da família”, também é demonstrado no filme de maneira desconcertante a medida em que o filme se desenrola. A opressão social mostrada em todo filme, pode até ser considerada nova para quem não vivencia ou não tem consciência de que o racismo velado está para famílias brancas, com suas piadinhas racistas internas no almoço de domingo e na manutenção de seus privilégios herdados, assim como o racismo estrutural está para pessoas negras que vivenciam a hipocrisia histórica onde racistas mesmo, sempre são os outros brancos, mas para quem vive em uma carne negra o que impressiona mesmo é a genialidade com que Jordan Peele, diretor do filme, demonstra uma realidade que muitos não querem ver. Para quem está acostumado a ouvir falar somente sobre violências físicas ligadas ao racismo, como a repressão policial por exemplo, que também não deixa de ser pincelada no filme, pode ser “surpreendente” descobrir as outras facetas do racismo.

Para além da “palmitagem”, que de primeira chamou a atenção no trailer, o filme aborda a fetichização de pessoas negras, especificamente do homem negro, que aparece ao longo de todo o filme, mas em especial quando parte da comunidade branca se reúne e o mesmo é apresentado como um troféu de “bondade e transgressão” pela namorada branca, que espantada houve os elogios (?) ao namorado. Outra crítica abordada importante de perceber é o constante desejo de perdão do personagem Chris, que mesmo passando por situações de clara, e aqui repito propositalmente, clara pressão psicológica devido ao racismo, pede desculpas à namorada por não estar se sentindo parte daquele ambiente. Rose, ofendida com a acusação verdadeira, o perdoa com toda sua benevolência, enquanto o namorado lhe diz que ela é diferente deles (os racistas) e o faz passar por mais uma série de situações onde o racismo se escancara cada vez mais. É importante notarmos também como o distanciamento e a negação de amor a si e aos seus, conecta o personagem com sua história familiar, fazendo com que, na tentativa de se distanciar cada vez mais de sua própria história, mesmo sendo alertado pelo amigo, Chris entre em uma relação interracial e seja levado a situações de perigo somente por um pouco de afeto, aceitação e de perdão.

A objetificação de pessoas negras, que são tratadas no filme como peças para posse de pessoas brancas, de maneira inesperada, traz para a reflexão um tema bastante recorrente, a apropriação e quão conveniente é para pessoas brancas se apropriarem de algo negro somente quando convém. Assim são também as aproximações feitas por brancos a negros, que muitas vezes em um esforço de abstração de seu histórico racista aproximam-se, exaltam pessoas negras, vide Obama, até o momento que não lhes servirem mais para cumprir o papel de “atestado não racista”. Outro ponto surpreendente e importante tocado no filme é o embranquecimento de pessoas negras pela pressão social do meio que vivem, trazendo para análise como um negro que pensa a si e aos seus de forma crítica, não só incomoda, mas também influencia e provoca “flashes de lucidez” naqueles que estão ao seu entorno para também transgredirem e descolonizarem seus pensamentos. Transgressão essa, que como bem representado no filme, não se dá de forma pacífica, aceitando tudo o que está televisionado, e sim de forma estrategista para romper com as amarras que estão impostas, sejam elas físicas, estruturais, ou de pensamento.

Corra!, talvez seja classificado como terror justamente por estes e tantos outros pontos percebidos ao longo do filme, serem tratados, tanto nos EUA quanto no Brasil, como hipnoticamente esquecidos por uma sociedade que até hoje dita e se beneficia com as regras do jogo. Mais do que um filme que traz o racismo de forma extrema, o filme traz importantes pontos para analisarmos a sociedade e a nós mesmos, afim de que possamos refletir e buscar alternativas para nos fortalecermos e sermos mais como o amigo de Chris, que surge para lembrarmos e não esquecermos que sempre, é nós por nós.

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