Sorriso amarelo e a luta antirracista OU os tamagotchis da branquitude

No dia 25 de maio de 2020, Derek Chauvin assassinou George Floyd após asfixiá-lo com o seu joelho. O primeiro estava armado, o segundo, desarmado. O primeiro era um policial com um contingente de 3 policiais para apoiá-lo, enquanto o segundo, um cidadão comum que estava sozinho. O primeiro é um homem branco, o segundo, um homem negro. Ambos, estadunidenses.

Durante os 8:46 minutos, havia um policial que os observava calado. Floyd agonizando sob o joelho de Chauvin. Calado porque era o seu trabalho. Calado porque não tinha nada a ver com ele. Calado porque era mais um dado para a estatística.

Este policial é Tou Thao, da etnia Hmong, imigrante oriundo do Laos, no Sudeste Asiático. 

Um imigrante que trabalhou duro em busca de uma vida melhor, sem reclamar. Esta história não te parece familiar? 

Tou Thao é um de nós. Não porque ele tenha as mesmas feições, mas porque é um imigrante que buscou uma vida melhor. Ele poderia ser o teu bisavô, avô, pai, tio, primo ou irmão. É o imigrante que sob qualquer custo buscou sua ascensão social. Ascensão que é sinônimo de assimilação. No caso brasileiro, não seria a assimilação festiva e banal. Não é somente o “japonês que gosta de samba”. É a assimilação que se integra à estrutura do mito da democracia racial. 

Os amarelos ocupam uma posição estratégica dentro do gradiente racial brasileiro entre brancos e negros. Por não pertencermos à identidade nacional brasileira, somos considerados os “estrangeiros perpétuos”. Sempre que me perguntavam: “De onde você é? Da China, do Japão ou da Coréia?”. Respondia calmamente: “Do Brasil”. O emissor da pergunta me olhava inquieto, tentando digerir a resposta que lhe havia acabado de dar e me perguntava novamente: “MAS DE ON-DE VO-CÊ RE-AL-MEN-TE É?”. Respirava fundo e dizia: “BRA-SIL”. 

Esta posição de ser o estrangeiro perpétuo parece irrelevante, porque pode soar como uma “simples brincadeira”. Contudo, por detrás desta “brincadeira”, há a constituição dos asiáticos-brasileiros como engrenagens que reforçam o racismo estrutural. 

O nome para isto é o conceito de “minoria modelo”. Por sermos os eternos estrangeiros, a única forma de sermos assimilados pela sociedade brasileira foi trabalhar muito. Trabalhar mais do que o salário recebido. Estudar mais do que o solicitado. Trabalhar sem se queixar. Estudar, mas algo que dê dinheiro. Eles nos deixaram ser doutô, mas calados e resignados. 

Ou não diria totalmente calados, pois expressamos nossa opinião em um caso particular. 

Os asiáticos são instrumentalizados pela branquitude para ser o seu habeas corpus racista. Alguns de nós afirmam orgulhosamente esta lógica de desumanização, bradando: “Eles são preguiçosos! Nós trabalhamos duro!”. Este é um dos raros momentos que você vai ver um “japonês” expressar-se politicamente em público.

Em 2017, na sede da Hebraica no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro proferiu um discurso que ilustraria a “minoria modelo”: “Alguém já viu algum japonês pedindo esmola? É uma raça que tem vergonha na cara!”. E complementou, “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”. 

Não é por um mero acaso que Bolsonaro proferiu este discurso eugenista, referindo-se especificamente ao quilombo. Ele quer diminuí-lo, pois ele sabe de sua potência de transformação radical na sociedade brasileira. O quilombo representa o símbolo de agência política e luta por dignidade humana protagonizada pela comunidade negra. 

Aqueles de olhos puxados que apoiam o Bolsonaro em coro representam o duplo ressentimento da diáspora asiática. O ressentimento do poder hegemônico da branquitude e o ressentimento do poder de resistência da negritude. Talvez venha daí a origem do “sorriso amarelo”.

Eu tenho uma tradução particular para o conceito de “minoria modelo”. O definiria como “bicho de estimação da branquitude”. Onde passeamos com o nosso dono três vezes por semana e comemos a ração Pedigree Frango Orgânico com Espinafre. Temos o nosso lugar para fazer xixi e cocô. Temos uma casinha no quintal feita de pinho e uma almofada da IKEA na sala de estar. Porém, se fazemos algo que não agrada o nosso dono, ele bate no nosso bumbum e diz: “Feio! Isso é muito feio!”. Nos escondemos calados, com o rabo entre as pernas. 

A “minoria modelo” gera uma forma de existir que chamaria de ontologia do pastel de flango. A expressão “pastel de flango”, construída pela branquitude, significa ao mesmo tempo: “você me serve” e “você nunca será um de nós”. Por isso a diferença entre “flango” e “frango” não é apenas uma questão de correção gramatical, mas uma subserviência ao modelo hegemônico de existência. 

Você pode me perguntar: “Se você critica o Brasil, por que você não volta para o seu país?”. Primeiro, já respondi esta pergunta. Segundo, não critico a brasilidade para defender os nacionalismos asiáticos. A China e o Japão ocupam historicamente na Ásia a mesma posição imperialista dos EUA e Europa no Ocidente. 

Peço licença a José Martí, mas por detrás de patriotismos como o brasileiro, o japonês, o cubano, o estadunidense ou o chinês, há genocídios. Não é à toa que o filho do rei português que virou imperador do Brasil por ME-RE-CI-MEN-TO bradou: Independência ou Morte! Ou mesmo, a famosa frase do comandante Che Guevara: “¡Patria o Muerte!”. Ambos sinalizaram que não há pátria sem morte. O auto sacrifício como sinal de heroísmo demonstra que não há ação política patriarcal sem a aniquilação de si e do outro. Apesar de Dom Pedro I e Che Guevara estejam em espectros políticos diametralmente opostos, ambos, argumentam o uso político da morte em defesa da pátria. O sacrifício do herói com sua pátria é, em última instância, a aniquilação para a manutenção patriarcal do poder. Não é por coincidência que a origem etimológica de pátria em latim é patrius, terra dos antepassados aka terra do pai. 

Com as manifestações do Black Lives Matter eclodiram vários movimentos em defesa de uma solidariedade antirracista. Sem nenhuma surpresa, vi alguns brancos progressistas tupiniquins declarando que as marchas são manifestações românticas e impulsivas. Dizem não se comover pelo “surto de empatia”. Em resumo, formularam as mais variadas explicações para argumentar que seus privilégios como herdeiros da Casa Grande no Brasil não se estenderiam em terras estadunidenses, por este motivo, infelizmente, não poderiam ir às manifestações.

Na hora “H”, o branco progressista fala, fala e fala (porque tem muita visibilidade para falar), justificando com términos acadêmicos bem precisos o seu medo da soberania popular. Tem medo porque ele precisa que haja pessoas em situação de miséria para manter o seu emprego.

No horizonte utópico de transformação social, não haveria nem a esquerda patriarcal nem o progressismo branco. As feministas latino-americanas, em especial as feministas negras brasileiras, vêm construindo há décadas esse modelo de solidariedade antirracista, antipatriarcal e anticapitalista. Não é como algum de nós, que se deparou com estas lutas somente agora. 

Para citar algumas dessas intelectuais-militantes: Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Rita Segato e Silva Rivera Cusicanqui. 

Por isso Mariele Franco mobilizou e mobiliza tanta gente. Mariele como mulher, negra, favelada, lésbica, acadêmica e vereadora, não representa apenas uma pessoa individual com todas estas identidades. Mariele Franco, parafraseando a antropóloga argentina Rita Segato, é o símbolo vivo da política como poder coletivo e solidário.  

O assassinato de Mariele simboliza a política de aniquilação constitutiva da branquitude, do patriarcado e do capitalismo. A lógica de extermínio representada hoje por Jair Bolsonaro. 

Elas nos mostram como o pensamento feminista construiu um modo de pensar o mundo criticamente, não se restringindo à vagueza da abstração autorreferente, produzindo assim uma ação prática. Elas que me ensinaram os sentidos das relações interseccionais que me atravessavam como homem amarelo emasculado que aspirou integrar-se à minoria modelo. Este pensamento produz uma ação com reflexão, ao mesmo tempo estrutural e existencial, do mundo.

Até quando seremos os tamagotchis da branquitude?

 

Henrique Yagui Takahashi

Doutorando em Estudos Culturais Latino-americanos pela The Ohio State University. Me somo às vozes do Coletivo Dinamene, do Blog Outra Coluna, de Laura Ueno e de Fernanda Carrasco Sumita sobre o papel dos asiáticos no racismo estrutural. 

 

Nota: Esta é uma versão ampliada do mesmo texto publicado em 25/06/2020 no Le Monde Diplomatique Brasil.

 


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