Carlos Humberto virou a noite acordado. E não foi culpa da ventania na madrugada no Rio. Estava cansado de ouvir amigos e a TV enumerando casos de racismo.
Rabiscou as últimas linhas da tese de mestrado sobre o extermínio da juventude negra e teve saudade do irmão. Dos amigos que perdeu. Não pregou os olhos.
“Chega de dormir pensando em morte, quero trabalhar com vida”, prometeu a si mesmo, em um momento daqueles ‘eureka’ que empreendedores costumam narrar.
Ligou para o amigo Antonio Pita, 35, jornalista interessado na história que não era contada nos livros. Formado na federal da Bahia, Pita foi repórter de economia, política e segurança e tinha voltado de uma viagem com o pai para a África do Sul.
“Pelo guia tradicional só se chegava a lugares como a Casa de Mandela. Tudo era folclorizado. Pegamos trem para ver os subúrbios. Aquilo me marcou, voltei cheio de histórias.”
No raiar daquele dia, em agosto de 2016, nasceu a Diaspora.Black. O objetivo era ser um negócio antirracista.
A primeira ideia foi oferecer hospedagem, ser um “Airbnb dos pretos”. “Tive uma experiência ruim com uma plataforma”, diz Carlos Humberto Filho, 43. “Um casal se negou a se hospedar em casa por eu ser um anfitrião de pele retinta.”
No primeiro teste, foram 120 pessoas cadastradas, o que validou o potencial do mercado. Em seguida, passou a ser um marketplace para que guias de roteiros de afroturismo vendessem pacotes a viajantes em busca de conhecimento sobre a cultura negra.
Para chegar a esse formato, que tornou Carlos “um homem de negócios”, a Diaspora.Black passou por provações.
A primeira foi mostrar que era possível desconstruir o turismo opressor em prática no país. “Há apenas dez anos, as referências internacionais do Brasil eram cartões-postais machistas que incentivavam o turismo sexual.”
A segunda foi apontar que o turismo brasileiro é um mercado sem inovação, que repete padrões externos que não dão conta das diversidades do país. “Recebemos menos visitantes que a Torre Eiffel ou o Caribe. O que vão buscar lá que não tem aqui?”
E a terceira provação foi colocar o negócio a serviço de uma jornada antirracista. “Temos o desafio de fazer as pessoas entenderem que não estamos falando de uma história nossa, de um grupo, é a história do Brasil”, afirma Pita.
“Vira e mexe fico sabendo de um herói da época da escravidão”, diz Cosme Felippsen, 33. Ele conduz turistas pela primeira favela brasileira, que fica no Rio de Janeiro. “O Morro da Providência é um quilombo urbano e não existe interesse do governo para que a sociedade conheça essa história.”
A Diaspora.Black fica com comissão de 20% no marketplace, que girou, desde 2017, R$ 1,5 milhão entre seus anunciantes. “Isso gera visibilidade e renda para os guias, algo que era apropriado por grandes operadoras”, diz Pita.
Os sócios fizeram vaquinhas virtuais e passaram por pelo menos cinco acelerações até se reconhecerem como startup de impacto social. “Lá vêm vocês com esses termos em inglês para dizer o que somos!”, brincava Carlos.
“Investimos em 33 startups desde 2020 por meio do Black Founders Fund”, explica André Barrence, diretor do Google for Startups no Brasil e América Latina.
“O que nos brilhou os olhos na Diaspora.Black foi ver a paixão deles em desenvolver o setor de turismo a partir de uma visão de cultura africana. Ninguém conhece isso mais do que eles.”
Temos o desafio de fazer as pessoas entenderem que não estamos falando de uma história nossa, de um grupo, é a história do Brasil
Antonio Pita
sobre os roteiros de afroturismo
Quando a dupla conseguiu provar ponto por ponto, veio a última provação, em 2020, com os impactos da chegada do coronavírus. “Em uma semana, 90% das reservas do ano inteiro foram canceladas, um endividamento histórico”, diz Pita. “Fiquei em negação por um tempo, achava que a pandemia não chegaria aqui. Mas fomos ágeis e certeiros na resposta.”
De fato: ofertaram eventos e cursos online com professores de referência. Ioga africana, percussão, dança, filosofia, literatura negra, letramento racial. Cresceram 250% na crise. Até setembro de 2021, quando o vírus deu trégua e as atividades presenciais superaram o online.
“Fomos ousados”, diz Carlos, que contou com o sócio André Ribeiro, 39, para dar conta dos desafios de tecnologia.
“Tínhamos a perspectiva de oferecer roteiros virtualmente. Mas lá na frente. Corremos para desenvolver”, conta o designer, filho de Janete Ribeiro, militante histórica do movimento negro no Rio.
“É um trabalho de formiguinha de reunir todo mundo que conta histórias e permitir que elas tenham visibilidade.”
Uma delas é narrada por Emily Borges, 37, no Cais do Valongo, zona portuária do Rio. “Aqui desembarcaram 1 milhão de africanos escravizados. Não é uma história fácil de contar”, diz a guia da Etnias Turismo e Cultura.
“É um sítio arqueológico que sofreu apagamentos e só depois recebeu o título de Patrimônio da Humanidade da Unesco”, segue ela, que comercializa o roteiro Pequena África na plataforma. São 400 empreendedores, a maioria mulheres e negros, que anunciam no site da Diaspora.Black.
A startup também se articula com políticas públicas. Em Salvador (BA), colaborou no Plano de Desenvolvimento do Turismo Étnico-Afro. Outra vertente são consultorias e treinamentos como as dadas a Guia Negro, Rota da Liberdade (SP) e Afrotours (BA).
“O nível de atenção e investimento que empresas dão para a pauta racial mudou com a morte de George Floyd”, diz Pita. “Fazemos vivências corporativas e treinamos lideranças e comunidades para que se apropriem do turismo e apresentem suas histórias.”
Em 2022, a Diaspora.Black alcançou 15 países e abriu escritório nos EUA. “Estamos trabalhando para ser a maior empresa de tecnologia para venda de turismo e cultura negra do mundo”, diz Carlos.
Um passo largo para o menino acolhido na primeira semana de vida em terreiro de umbanda. “Não tínhamos para onde ir. Lá aprendi sobre acolhimento e ancestralidade.” Aos 11 anos, Carlos liderou excursões para praias cariocas. “Era farofeiro”, diz ele.
A cabeça inquieta o levou a integrar movimentos sociais e acessar espaços de debate. Estudou geografia, foi cotista na PUC-Rio e fez intercâmbio em Harvard com bolsa de ações afirmativas. Viajou pelo Brasil movido pela curiosidade.
“Tudo isso abriu portas profissionais, mas não me livrou de vivenciar o racismo.” Memória dolorida que resolveu combater de uma vez por todas naquela noite insone.
PROJETO EM NÚMEROS
– 400 afroempreendedores do turismo e da cultura negra atendidos na plataforma
– R$ 1,5 milhão mobilizado entre empreendedores no marketplace
– 15 países e 145 cidades atendidos via plataforma
– 30% de aumento na geração de renda entre anunciantes
Conheça os demais finalistas do Prêmio Empreendedor Social 2022 na plataforma Social+ e os vencedores, que serão anunciados na segunda-feira (19), em cerimônia transmitida ao vivo pela TV Folha.