Steve McQueen se inspira em Bob Marley para criar série sobre tensões raciais

“Não quero protestar. Ninguém quer protestar. Só queremos tratamento igualitário, para que não precisemos mais protestar”, afirma o cineasta britânico Steve McQueen. “É difícil para nós, negros, vivermos nesse mundo de extremos. Mas não podemos deixar de lutar.”

Há um tanto de luta e um tanto de fervo em “Small Axe”, minissérie sobre atritos raciais no Reino Unido que o diretor criou para a BBC, ainda sem previsão de estreia no Brasil. O título, “pequeno machado”, foi pinçado de um verso de Bob Marley —”se vocês são a grande árvore, nós somos o pequeno machado”.

A influência do reggae na Inglaterra dos anos 1970 e 1980 é um dos motores da série. McQueen cavoucou de sua infância imagens e sons das “blues parties”, farras caseiras que os imigrantes caribenhos faziam em Londres —espécie de resistência festiva de uma comunidade relegada às margens da sociedade britânica.

Outros embates sociais são retratados de forma mais explícita na série, como os episódios envolvendo o julgamento de ativistas e a violência policial contra negros, situações que ganham toda uma outra voltagem no rescaldo do assassinato de George Floyd e dos atos do Black Lives Matter.

“O mundo acordou para o racismo agora por causa da pandemia. Estavam todos em casa vendo uma pessoa ser assassinada de forma brutal”, diz ele, sobre a morte de Floyd.

Precisou que isso acontecesse “para algumas pessoas pensarem ‘talvez esse negócio de racismo exista mesmo'”. “Isso é o extremo a que as coisas têm que chegar para que a gente tenha essa conversa”, diz o diretor e videoartista, que levou o Oscar de melhor filme por “12 Anos de Escravidão”.

“Small Axe” é uma coleção de cinco episódios ambientados entre os anos 1960 e 1980. Cada um de seus capítulos tem uma história própria —personagens e elenco não se repetem e o tempo de duração varia de 60 a 124 minutos, muito além do padrão da TV.

Cena do episódio “Mangrove”  da série “Small Axe”, dirigida por Steve McQueen (Foto: Des Willie/ Divulgação)

“Menti, porque eu disse que queria fazer uma série de televisão e fiz cinco filmes no lugar”, diz McQueen, rindo como se a história não passasse de uma pegadinha. “Eu não falei a verdade [para a BBC] e eu sabia bem, desde o começo, o que estava fazendo.”

Alguns dos episódios chegaram a passar pelos festivais internacionais, como se fossem filmes independentes. O terceiro, “Red, White and Blue”, foi exibido em .

Na trama, John Boyega, dos novos “Star Wars”, vive Leroy Logan, um personagem real que, depois de ver o pai sendo agredido pelas autoridades, decide entrar para a Polícia Metropolitana de Londres, a fim de combater seu racismo institucionalizado.

Outro destaque é “Mangrove”, protagonizado por Letitia Wright —que pode se tornar a nova Pantera Negra depois da morte de Chadwick Boseman, seu irmão de tela no longa da Marvel. No episódio, vemos o julgamento verídico de um grupo de ativistas, membros do braço britânico do grupo Panteras Negras.

“Alex Wheatle” é a última história real de “Small Axe” e acompanha o escritor que dá nome ao filme, preso por participar de atos contra a polícia londrina nos anos 1980.

“Education” e “Lovers Rock”, McQueen diz, são só parte ficção. A primeira fala de amadurecimento. A segunda é aquela em que McQueen rememora as tais “blues parties”, em parte inspiradas nas noitadas de sua tia, Molly, que por algumas horas trocava as rígidas amarras cristãs por alguma festa na vizinhança.

“Cada uma dessas histórias é singular, mas elas estão presas à narrativa de que estão representando uma comunidade, algo mais amplo. Elas acabam representando diversas pessoas com experiências semelhantes”, afirma o cineasta. “Todas essas histórias falam sobre como podemos mover montanhas por meio de um esforço coletivo.”

McQueen ainda ressalta que, mesmo se passando entre 1968 e 1984, as tramas de “Small Axe” não são sobre o passado, mas sobre o futuro. Elas são um reflexo de para onde a população negra quer ir. É fato que muito progresso foi feito desde então, diz ele, mas não foi o suficiente, e é por isso que precisamos olhar para trás e repensar o agora.

Ele abre um parênteses para falar da América Latina. Ele diz já ter visitado o Brasil e que sabe que a população do país, segundo o censo, tem metade de pretos e pardos. Ele acha estranho nunca ter havido um movimento pelos direitos civis por aqui e afirma ser absurdo o fato de a demografia brasileira não estar refletida no campo da política.

Mesmo assim, diz ver alguns avanços no mundo e destaca a importância de atacar a raiz desses problemas raciais. Ele dá, como exemplo, as novas políticas em prol da diversidade anunciadas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

“O Oscar é o monte Everest. Eu não estou nem no acampamento base, eu estou treinando altitude na Escócia. Isso quer dizer que eu estou interessa do nas crianças e nos jovens, eu quero que eles saibam que eles são bem-vindos na indústria cinematográfica.”

Para ilustrar o quão problemática é a questão da falta de representatividade no setor, ele lembra uma visita ao set de um amigo cineasta em Londres. “Percebi que 100% da equipe era branca, em Londres ainda”, diz, destacando a pluralidade da metrópole.

“Como isso é possível? É aí que você vê o racismo. Não gosto da ideia de não estarmos representando o nosso ambiente. Essa luta não é sobre mais ou menos, é sobre contar a verdade. O que há de tão assustador na verdade?”

Mesmo que agora faça um trabalho na televisão, McQueen diz que sua verdadeira paixão continua sendo o cinema. “Ele ainda é muito diferente da TV, já que, no cinema, há um momento em que você pode meditar, contemplar.”

Cena do episódio “Mangrove” da série “Small Axe”, dirigida por Steve McQueen (Foto: Des Willie/ Divulgação)

Mas ainda que “Small Axe” fosse lançada como o pacote de cinco filmes que McQueen reforça que é, a pandemia teria decerto atravessado seus planos de chegar às telonas.

“Quando a pandemia terminar, vai haver uma cascata de pessoas indo aos cinemas. É uma experiência comunal.”

Episódios de “Small Axe”

“Mangrove”
Acompanha o julgamento de um grupo de ativistas negros depois de um conflito com a polícia londrina na década de 1970. O nome do episódio é referência ao bar e restaurante em Londres que se tornou um ponto de encontro do movimento negro na cidade e, por isso, alvo de ações policiais

“Lovers Rock”
Ambientado numa noite nos anos 1980, em que um grupo de amigos se reúne para uma festa, discutindo música, romance e a violência que os cerca. Um dos mais elogiados pela crítica, o episódio mergulha fundo na trilha sonora da época, com clássicos como ‘Silly Games’, hit das festas clandestinas da comunidade

“Red, White and Blue”
Narra a história real de Leroy Logan, um rapaz negro que, depois de ver o pai sendo agredido pelas autoridades, decide ele próprio entrar para a polícia londrina e, assim, combater seu racismo

“Alex Wheatle”
Acompanha o escritor que dá nome ao episódio, de sua infância até sua prisão nos anos 1980, depois de um motim que terminou em confronto com a polícia

“Education”
A história de amadurecimento de um garoto de 12 anos que é fascinado por astronautas e pelo espaço, mas que, inesperadamente, se torna vítima de uma política de segregação na escola onde estuda, que o transfere para uma outra instituição de ensino

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