Insanidade não explica o que leva um grupo de fundamentalistas causarem tumulto, na porta de um hospital, exigindo que uma menina de dez anos, estuprada pelo tio por metade de sua vida, fosse obrigada a continuar uma gravidez indesejada. E, pior, chamando-a de assassina.
Estavam ali pelos mais diferentes motivos – da incapacidade de sentir empatia pelo seu semelhante, passando pela necessidade de fazer parte de um grupo e dar algum sentido à sua existência até um intenso processo de desinformação aliado à deformação religiosa imposta por líderes que mentem sobre o sentido do cristianismo. Pois, em nenhum momento, os evangelhos trazem qualquer versículo que diga algo como “Ide e torturai as meninas vítimas de estupro em nome de meu pai, pois serão recompensados”.
Seria fácil e tentador afirmar que esse tipo de ambiente surgiu com a atual conjuntura política brasileira, mas tudo isso está aí muito antes de Giordano Bruno virar churrasco por defender que a Terra não era o centro do Universo no século 16. Com o tempo, trocamos fogueiras por paus, pedras e smartphones. Mas como muita gente se sente mais à vontade durante o atual governo, que faz parecer que The Handmaid’s Tale é um documentário, o esgoto ganha a rua com mais facilidade.
Em meio a esse contexto, subcelebridades da banda fascista da extrema-direita aproveitam momentos como este para conquistar audiência e seguidores. Revelam o nome da menina violentada, armam barraco na porta de hospitais, conclamam os “homens e mulheres de bem” para enfrentar a besta na forma de médicos que têm a coragem de fazer seu trabalho. Contam com a ajuda de simpatizantes do ódio de dentro do Estado brasileiro para obter informação privilegiada.
Não é em nome do feto que isso é feito, mas de poder. Sejam os manipuladores subcelebridades da extrema-direita, sejam políticos, pastores, empresários, padres, bispos.
Quem comanda o show ou sabe como dele se apropriar organiza essa massa com o objetivo de promover sua imagem como “guardiã dos valores” de um determinado naco da população e ser visto como sua “consciência crítica”. Dessa forma, consegue aumentar sua capacidade de construir significados e sentidos coletivos. Mais do que isso, consegue trazer esse naco para dentro de sua área de influência e ter poder sobre ele.
Nesse contexto, o ódio não vem apenas do medo e da incompreensão do desconhecido e do diferente. O ódio é uma construção que serve a fins políticos, mostrando que o outro é o mal e nós somos o bem. Construção tão bem-feita que passamos a achar que aquilo plantado dentro de nós por terceiros sem que percebéssemos, na verdade, é realmente nosso.
Quando uma turba resolve fazer Justiça com as próprias mãos e parte para o linchamento de uma pessoa acusada por eles de cometer um crime, usa, não raro, o discurso de que as instituições públicas não conseguem dar respostas satisfatórias para punir ou prevenir. Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor, juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer, baseado em um entendimento limitado do que é certo e do que é errado. Do que é moral, imoral ou amoral. Do que é aceitável ou inaceitável. Mesmo que, ao final do dia, isso os transforme em criminosos mais vis por estarem linchando uma menina inocente e os profissionais que a ajudaram a viver.
Não é à toa que essa situação remete a momentos da Inquisição que pensávamos ter deixado para trás. Durante a Contra-Reforma, lideranças lançavam ao fogo quem questionava sua interpretação das palavras do Deus cristão. No fundo, não era a fé e sua doutrina que estavam protegendo, mas a manutenção de sua hegemonia sobre a população. Pois quem detém a interpretação sobre quando começa a vida, quando ocorre a morte e o que existe após dela, controla quem habita o mundo.
O fato é que Jeová não tem nada a ver com tudo isso, apesar de ser usado da boca para fora por esses líderes em nome de seu projeto, diariamente.
Melhor seria que, ao invés de usarem justificativas religiosas, eles tivessem a coragem de assumir que estão em campanha eleitoral antecipada. Isso geraria uma multa, mas ao menos nos pouparia no constrangimento público. E de que mais dor fosse imposta a uma criança que fomos incapazes, como sociedade, de proteger.
Por que estávamos mais preocupados em caçar fantasmas da pedofilia do que entender que o inimigo, muitas vezes, dorme ao lado e diz amém. Por que muitos líderes e influenciadores dizem estar erguendo o reino dos céus, quando na verdade constroem o inferno para os mais vulneráveis na Terra.