Sueli Carneiro analisa as raízes do racismo estrutural em aula aberta na FEA-USP

Encontro explorou os temas do livro “Dispositivo de racialidade” e integrou as celebrações dos 50 anos do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA), organizado em colaboração com Geledés e o Generas – Núcleo de Pesquisa, Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade

Foto: Ismael Rosário

Na tarde da última quarta-feira (18), a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) foi palco de uma aula aberta com a filósofa e militante Sueli Carneiro. Durante o evento, Sueli explorou os temas de seu livro “Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser”, publicado em 2023.

O encontro, parte da disciplina “Interseccionalidades em Organizações Diversas”, integrou as celebrações dos 50 anos do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA) da universidade. Foi realizado em formato híbrido e em colaboração com  Geledés – Instituto da Mulher Negra, o Generas – Núcleo de Pesquisa, Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade, e o próprio PPGA.

“É extraordinário estar aqui. Quando eu adentrei a Universidade de São Paulo, só tinha um aluno preto: Milton Barbosa, líder do Movimento Negro Unificado (MNU) até hoje – para se ter uma ideia do que significa a mudança extraordinária que vem se processando no campus dessa universidade desde então”, recordou Sueli.

A mesa também foi composta por Antônia Quintão, professora e presidenta de Geledés; Akira Galvão, pesquisadore do Generas e mestrande na FEA-USP; e Hellen Neiva, pesquisadora do Generas e doutoranda na FEA-USP.

A mesa também foi composta por Antônia Quintão, professora e presidenta de Geledés; Akira Galvão, pesquisadore do Generas e mestrande na FEA-USP; e Hellen Neiva, pesquisadora do Generas e doutoranda na FEA-USP. – Foto: Ismael Rosário

Ao refletir sobre o evento, Antônia Quintão destacou a importância de espaços como esse e, complementando a fala de Sueli, abordou  a dificuldade de ser a única negra em ambientes majoritariamente brancos. “Essa solidão é muito difícil de ser encarada. E a gente quer que isso mude. Por isso é tão bom ser acolhida como eu fui aqui e ter o espaço e o apoio para propor esse debate”, disse.

Antônia Quintão, professora e presidenta de Geledés – Instituto da Mulher Negra – Foto: Ismael Rosário

As origens do pensamento

Sueli Carneiro desenvolveu a ideia para o livro “Dispositivo de racialidade” ainda nos anos 1980, ao refletir sobre as análises de Michel Foucault sobre dispositivos de poder. Inspirada por esse conceito, iniciou um trabalho acadêmico para explorar a possibilidade de a racialidade constituir um dispositivo de poder.

Apesar de o tema ter ficado adormecido por quase duas décadas, o chamado acadêmico retornou quando a professora Roseli Fischmann,  orientadora de mestrado de Sueli, a desafiou a retomar a linha de pensamento e sistematizar suas reflexões acumuladas ao longo de anos de ativismo e militância. 

Encorajada por essa parceria, mergulhou novamente na teoria, analisando profundamente como os dispositivos de poder, o biopoder e a noção de resistência podem ser aplicados à racialidade.

Essa jornada culminou na defesa de sua tese em 2005, que apenas em 2023, após 18 anos, se transformou na obra publicada. No livro, a autora revisita quase quatro décadas de análise e prática, oferecendo uma perspectiva teórica robusta e inovadora sobre o dispositivo de racialidade, suas raízes históricas e suas implicações na sociedade brasileira.

A filósofa Sueli Carneiro – Foto: Ismael Rosário

Dispositivos de poder e racialidade

Sueli Carneiro explicou que os dispositivos de poder, conforme descritos por Michel Foucault, operam por meio de redes complexas que incluem discursos, instituições, leis e práticas sociais. No contexto brasileiro, o dispositivo de racialidade estrutura e perpetua hierarquias raciais, mantendo a supremacia branca e marginalizando a população negra.

“O dispositivo de racialidade, na sua dimensão de fábrica discursiva ou instituinte de um campo de saber sobre o outro, especialmente sobre o africano e seus descendentes, promoveu a negação da plena humanidade daqueles que carregam em si a negritude”, explicou.

Carneiro ressaltou como a racialidade não apenas define quem ocupa posições de prestígio na sociedade, mas também influencia a construção de subjetividades, moldando a forma como indivíduos negros e brancos percebem a si mesmos e aos outros.

Crédito Foto: Ismael Rosário

Filosofia europeia e a legitimação do racismo

A filósofa destacou a influência da filosofia europeia na consolidação de ideologias racistas, citando pensadores como Immanuel Kant e Georg Hegel. Ela apontou como esses filósofos legitimaram a hierarquização racial ao atribuir características morais e cognitivas inferiores a povos não brancos.

Kant, por exemplo, associou a inferioridade dos africanos ao clima tropical, afirmando que esses povos não possuíam a mesma capacidade de desenvolvimento civilizacional dos europeus. Hegel, por sua vez, reforçou a ideia de que a escravidão era um meio de desenvolvimento do sentimento humano para os negros, que para ele era um povo incapaz de se desenvolver culturalmente ou de criar uma sociedade civilizada. 

“Essa produção científica e filosófica decretou a inferioridade natural dos africanos e demais não brancos. Algo crucial para as sociedades europeias que se lançavam à expansão imperialista da África e da Ásia”, pontuou.

Sueli também mencionou o conceito de epistemicídio, elaborado por Boaventura de Sousa Santos, para descrever a destruição de conhecimentos e epistemologias dos povos colonizados, substituídos por uma visão eurocêntrica dominante.

Contrato racial e desigualdade estrutural

Baseando-se na teoria do filósofo Charles Mills, Sueli Carneiro abordou o conceito de contrato racial (uma crítica ao contrato social tradicional da filosofia política) como uma ferramenta para compreender as estruturas de poder racializadas.  Segundo Mills, o contrato racial opera como um pacto implícito que define quem possui direitos plenos e quem é relegado à condição de subalternidade. 

Esse contrato não apenas legitima a exclusão de negros e outros grupos racializados, mas beneficia diretamente as elites brancas ao garantir a manutenção de privilégios. “O contrato racial seria, então, a síntese dos poderes produzidos pelo dispositivo de racialidade à custa do desempoderamento de grupos humanos estigmatizados”, ressaltou Sueli.

Segundo ela, no Brasil, essa dinâmica é evidente na prevalência da população branca em cargos de liderança e na aplicação desigual da justiça, simbolizada pela expressão popular “Código Civil é para os brancos e o Código Penal para os negros”. 

Associado ao conceito de biopoder (caracterizado pela gestão da vida e técnicas de controle sobre corpos e a vida cotidiana), desenvolvido por Michel Foucault, o contrato racial organiza as relações sociais e políticas e distribui a vida e a morte de acordo com a racialidade de cada grupo. Ele então se manifesta na violência racializada, como exemplificado pelos altos índices de homicídios de jovens negros.. 

A Filósofa Sueli Carneiro – Foto: Ismael Rosário

Branquitude e racismo

A filósofa também abordou como as pessoas brancas dominam todas as esferas de poder no país – desde os meios de comunicação até as universidades, empresas, e esferas políticas. Isso evidencia a presença de uma “branquitude” no topo da hierarquia social, ou seja, uma concentração de poder nas mãos de um grupo racial específico, o que é uma manifestação do racismo estrutural e da persistência do contrato racial.

Carneiro criticou a noção de meritocracia, argumentando que ela mascara as desigualdades estruturais e perpetua a falsa ideia de oportunidades iguais. “A eleição da brancura se consubstancia em critérios e procedimentos que garantem a seleção preferencial de pessoas brancas às ocupações de maior prestígio e poder, e a isso tem-se chamado meritocracia”, explicou.

Sueli pontuou que o racismo estrutural tem raízes no colonialismo e nas políticas de embranquecimento implementadas pelo Estado brasileiro. Após a abolição da escravidão, a imigração europeia foi incentivada com o objetivo de “branquear” a população, excluindo as populações negras e indígenas do processo de desenvolvimento social e econômico.

Por fim, a filósofa destacou que, para subverter a lógica racial que governa o Brasil, é necessário um reconhecimento profundo da herança histórica do racismo e da desigualdade, ações afirmativas para reparar os danos causados e um esforço contínuo para colocar o enfrentamento do racismo no centro das políticas públicas e das práticas sociais. Além disso, é fundamental que as vozes negras e suas resistências sejam ouvidas e reconhecidas.

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