Superar a retórica é fundamental

Decisões sobre a escritora Ana Maria Gonçalves e a advogada Vera Lúcia Santana de Araújo dependem mais de homens brancos do que do mérito de pretos e pardos

Por ironia ou capricho, quis o destino que a última quinta-feira, dia 10 de julho, fosse marcada por duas decisões opostas em termos de representatividade de gênero e raça em instâncias de poder e decisão no Brasil. Tomadas em esferas distintas —uma no âmbito público e outra no privado—, ambas dão o que pensar.

No Rio de Janeiro, a Academia Brasileira de Letras (ABL) elegeu uma mulher negra, a renomada escritora Ana Maria Gonçalves, autora do romance “Um Defeito de Cor”, para integrar seu rol de imortais pela primeira vez nos 128 anos da instituição.

A escritora Ana Maria Gonçalves, primeira mulher negra eleita à Academia Brasileira de Letras, na exposição inspirada em seu livro ‘Um Defeito de Cor’, no Sesc Pinheiros, em 2024 – Eduardo Knapp – 23.abr.24/Folhapress

Em Brasília, o Diário Oficial da União (DOU) informava que outra mulher, a advogada Vera Lúcia Santana de Araújo, detentora de notório saber jurídico, não se tornaria a primeira negra a compor o quadro de ministros titulares do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos 93 anos de existência da Corte.

A ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, em pronunciamento no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra – Marcos Oliveira – 8.ago.24/Agência Senado

Concordo plenamente com a observação feita pela escritora Conceição Evaristo ao ser preterida na disputa por uma das cadeiras da ABL há sete anos: “o importante não é ser a primeira, o importante é abrir caminhos”. A questão é que essa abertura de caminhos depende da vontade de uma sociedade racista e comandada por homens brancos mais do que do mérito de pretos e pardos –não importa o gênero.

Num Estado democrático de Direito, representatividade é um pressuposto muito importante. Além de garantir a participação de todos nos debates e nas decisões de interesse geral, constrói identidade e subjetividade.

Quando uma mulher negra alcança um cargo de comando, gestão, decisão, influência, ela sinaliza que outras iguais a ela também podem ocupar espaços dessa natureza.

Uma nação que não valoriza a participação representativa de seus cidadãos jamais irá se desenvolver de forma justa e igualitária. Ir além da retórica é fundamental para romper com a lógica excludente do racismo institucional que cotidianamente nega oportunidades de representação histórica às negras e aos negros deste país.


Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

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