Temos testemunhado uma crescente tensão entre o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal. Essa tensão não decorre, no entanto, apenas do ressentimento de alguns inimigos da democracia, contra um tribunal que frustrou suas expectativas de rasgar o pacto constitucional de 1988, em 8 de janeiro de 2023.
Há também um movimento bastante intenso por parte de um grupo mais amplo de parlamentares desconfortáveis com o controle exercido pelo Supremo sobre a conduta da classe política, assim como em decorrência do que reputam ser avanços indevidos do tribunal sobre as esferas de competência reservadas ao legislador.
Até o presidente Lula, aliado da hora do Supremo, resolveu dar conselhos ao Supremo, afirmando que o tribunal não deveria se meter em tudo, em reação à decisão do STF de despenalizar o porte de maconha para consumo próprio.
A reação do Legislativo ao modelo supremocrático que foi paulatinamente se consolidando ao longo dos anos, em grande medida por delegação e incapacidade do sistema político de resolver problemas de sua competência, tem sido a propositura de uma série de iniciativas legislativas voltadas a restringir as competências do Supremo, a limitar o poder e restringir os mandatos dos ministros, assim como medidas legislativas voltadas a neutralizar decisões do Supremo, contrárias a interesses grupos parlamentares, especialmente os mais conservadores.
A aprovação de lei reestabelecendo o marco temporal, no mesmo dia em que o Supremo declarou a tese inconstitucional, e a aprovação, pelo Senado, de PEC voltada à criminalização do consumo de drogas, buscando preventivamente esvaziar a decisão tomada pelo tribunal nesta última semana, são exemplos claros desse tipo de retaliação.
Esse cabo de guerra não é incomum em circunstâncias onde prevalece uma grande distância entre o que pensam os membros do Legislativo e os que ocupam a cúpula do Judiciário. No caso brasileiro, no entanto, há que se ponderar que a maioria conservadora que passou a dominar o Legislativo está distante não apenas do pensamento médio dos membros do Supremo, mas também das diretrizes adotadas pela Constituição de 1988.
O dilema colocado ao Supremo nessas circunstâncias é como reagir a essas retaliações oriundas de um parlamento insatisfeito com a Corte e com a própria Constituição?
Uma primeira alternativa é dar um passo para atrás e buscar minimizar a zona de conflito, flexibilizando a defesa de direitos de cunho “progressista” e se eximindo de controlar atos ilegais perpetrados por membros da classe política.
Uma segunda tentação, que parece estar ocorrendo no caso do marco temporal, é transformar a Corte Constitucional, que tem por missão maior garantir direitos de minorias vulneráveis, em uma câmara de negociação.
Em ambas as hipóteses o risco é fragilizar a Constituição, transformando-a em um documento facultativo, que pode ser moldado por aqueles que têm mais poder.
Uma terceira alternativa, que certamente contribuiria para reestabelecer um equilíbrio mais saudável e pertinente entre os Poderes, parece, no entanto, sofrer resistências internas, pois exigiria uma capacidade de autocontenção e especialmente de contenção das prerrogativas individuais dos ministros.
A estratégia seria fortalecer a colegialidade, qualificar o processo de deliberação, ampliar a consistência e coerência na aplicação da lei, estabelecer posturas interpretativas que reduzissem a discricionariedade judicial, gerando precedentes capazes de orientar e estabilizar as expectativas dos jurisdicionados.
Também seria indispensável nesse processo que o Supremo adotasse regras de conduta voltadas a fortalecer a sua imparcialidade.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)