Interrupção da gravidez é quinta maior causa de morte materna
“O aborto ser ou não legal não teria mudado a minha decisão. Só teria permitido que eu não corresse risco de vida como corri”. O depoimento é de X., de 30 anos, que recorreu, há dez anos, ao procedimento, só permitido legalmente em alguns casos no Brasil. Aos 20 anos, ela ingeriu um remédio abortivo e findou uma gravidez de cinco semanas, sozinha, no banheiro de casa. Ao longo dos dez anos em que a jovem guardou o segredo, estimativas indicam que entre 7,5 milhões e 9,3 milhões de mulheres também interromperam a gestação no Brasil entre 2004 e 2013. Apesar de afetar milhares e custar aos cofres públicos pelo menos R$ 142 milhões por ano, o aborto continua sendo tratado como uma questão delicada nas campanhas à Presidência da República, e a maioria dos candidatos procura driblar o assunto.
NEM TODAS SÃO INTERNADAS
Quinto maior causador de mortes maternas no Brasil, o aborto tem um custo financeiro tão alto quanto o emocional. Repórteres do GLOBO calcularam, com base em dados do estudo, e do DataSus, quanto os governos gastam com complicações decorrentes de interrupções da gravidez — a maioria clandestina. No ano passado, foram 205.855 internações decorrentes de abortos no país — sendo 51.464 espontâneos e 154.391 induzidos (ilegais e legais). Levando em consideração que o valor médio da diária de uma internação no SUS é de R$ 413 e que as hospitalizadas passaram apenas um dia sob cuidados médicos, o governo gastou R$ 63,8 milhões por conta dos abortos induzidos. Também em 2013, foram 190.282 curetagens (método de retirada de placenta ou de endométrio do corpo), a grande maioria de quem quis interromper a gravidez. Isso teria custado um total de R$ 78,2 milhões, já que, pela tabela do SUS, cada intervenção custa, em média, R$ 411. No total, chega-se a, no mínimo, R$ 142 milhões.
NÚMERO PODE SER MAIS ALTO
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante. O número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres, segundo um estudo publicado em 2013 pelo braço do órgão na América Latina, a Organização Pan-americana de Saúde. Segundo o estudo de 2010, feito pela Universidade de Brasília (UnB), tido como referência pela OMS, e comandado pelos pesquisadores Débora Diniz e Marcelo Medeiros, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. Hoje, no Brasil, existem 37 milhões de mulheres nessa faixa etária — de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dessa forma, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto na vida.
— É evidente que a proibição de interromper a gravidez voluntariamente não evita que as mulheres recorram ao abortamento clandestino e inseguro, às vezes em total desespero, devido ao enorme problema que significa uma gravidez indesejada no momento — afirma Monteiro.
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA
De acordo com estudo da UnB, de 2010, o método mais comum é que a mulher comece o aborto em casa, com medicamento e vá para a rede pública fazer a curetagem.
— O aborto hoje é um problema de saúde pública e deve ser discutido pelos três poderes. Os custos e as complicações dos abortos ilegais são enormes. Clinicamente as mulheres podem ter infecções, contrair doenças que incluem a Aids, ter hemorragias que podem levar à morte e ter perdas de órgãos internos. E isso vai parar nas mãos do Estado. As pessoas vão recorrer também ao SUS — explica Sidnei Ferreira, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj).
Segundo especialistas, além disso, o sistema público acaba precisando disponibilizar remédios para tratamentos, centro cirúrgicos (que têm alto custo) e deslocar médicos e enfermeiros.
— Sem dúvidas, se esses procedimentos fossem feitos com responsabilidade, em lugares equipados com fiscalização, as complicações seriam menores. Eu não acredito que os números de abortos aumentaria se fosse legalizado, como defende quem é a favor da proibição. O número é absurdamente alto. É preciso se discutir e achar um molde, onde o aborto não seja feito indiscriminadamente. Mas as pessoas precisam parar de morrer. Nenhuma mulher gosta de fazer aborto. É um abalo muito forte psicológico e uma dor física enorme — relata Ferreira.
COMPLICAÇÕES FREQUENTES
As complicações também são frequentes. No Rio de Janeiro, um caso chamou a atenção para o perigo das clínicas clandestinas. A auxiliar administrativa Jandira Magdalena dos Santos Cruz desapareceu em agosto após entrar num carro rumo a uma clínica ilegal em Campo Grande para fazer um aborto. Ela teria morrido durante o procedimento e a polícia suspeita que seu corpo tenha sido incendiado e esquartejado. A irmã da jovem, Joyce Magdalena, diz que já perdeu as esperanças de encontrá-la viva:
— Sou realista. Sei que ela não está mais viva. Infelizmente, a polícia não atua com rigor contra as clínicas de aborto, até porque, há policiais envolvidos. No caso da minha irmã, um policial atuava no bando.
Enquanto Jandira procurou uma clínica, X. preferiu recorrer ao Cytotec, remédio usado como abortivo, por induzir o parto em qualquer estágio da gravidez, em casa. Já Y., que descobriu que sua filha tinha um problema genético grave, cogitou tomar o remédio por conta própria, que compraria por R$ 350, ou apelar para uma clínica:
— Ainda tentando as formas legais ou seguras de fazer um aborto, fui a um especialista renomado que me disse: “espera duas semanas para fazer. Se ela não morrer naturalmente, eu mesmo faço.” Fizemos um exame e nesse dia descobrimos que ela já estava morta há uns dias. Fui para uma maternidade e usei lá o Cytotec. Senti as maiores dores da minha vida.
Fonte: O Globo