Tão jovem, sonhadora e negra como eu: morte de advogada em voo importa, sim

Quando vi a foto da advogada Sara Raimundo sorridente, em preto e branco, no Instagram, logo percebi que se tratava de algo sério. Por alguns segundos, enquanto lia a legenda, me mantive atônita, com a mão na boca encobrindo o meu assombro diante do que lia.

Sara teve uma parada cardíaca durante um voo a caminho do evento Brazil at Silicon Valley, na Califórnia (EUA). Recebeu os primeiros socorros dentro do avião, que fez um pouso de emergência em Nova Orleans, onde foi atendida no hospital. Não resistiu. A morte de Sara me impactou tremendamente: ela era tão jovem, tão sonhadora e tão negra quanto eu. Tinha um sorriso tão vivo quanto o meu.

Nós não éramos amigas, conversei rapidamente com ela num evento, e quem nos apresentou me disse: você precisa conhecer Sara e contar a história dela. Essa foi a primeira lembrança que me veio à mente quando li a mensagem de que Sara Silva Raimundo havia falecido a caminho de realizar mais um sonho.

São antigos os estudos que apontam a mulher negra como principal vítima de doenças cardiovasculares não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos. Um recente trabalho da American Heart Association (associação que se dedica a pesquisar temas sobre o coração) mostrou que mais da metade das mulheres pretas dos EUA com 20 anos ou mais têm doenças cardiovasculares. São cerca de 50 mil mulheres negras que morrem em consequência de doenças cardíacas todos os anos no país.

No Brasil, é a principal causa de disparidade entre a expectativa de vida de pessoas negras e brancas. Muitos podem ser os fatores, entre eles o de a população negra estar entre os piores indicadores de desenvolvimento humano, o que aumenta a exposição a situações de risco, à má alimentação e ao difícil acesso a políticas de promoção da saúde. Mas os pesquisadores da Universidade de Boston acabam de trazer um outro fator importante para esta conversa: o racismo.

Ao longo de 22 anos, os pesquisadores acompanharam mais de 48 mil mulheres pretas americanas e descobriram que o risco de doença coronariana foi 26% maior entre aquelas que relataram episódios de racismo no emprego e em interações com a polícia em comparação com as que não vivenciaram esses tipos de discriminação.

Eu, como mulher negra, sempre soube do impacto real do racismo na vida e no coração das pessoas, principalmente das mulheres. As bases científicas são fundamentais para o mapeamento e a formulação de políticas de cuidado de todos, principalmente das populações mais vulneráveis.

Já faz alguns meses que tenho evitado trazer o assunto racial neste espaço de Universa, por me ver sensível ao efeito emocional que falar de racismo me causa, considerando que já o vivo diariamente, pois a minha cor chega primeiro, sempre.

A parada do coração de Sara me abalou, assim como a diversas outras mulheres que nem sequer a conheceram, mas que se identificaram com ela por meio dos sonhos, da história de luta, dos ambientes frequentados em que negros são a minoria. A finitude da vida desperta em nós uma atenção importante faz com que a gente busque caminhos para uma experiência mais plena e verdadeira.

Aos 32 anos, Sara era advogada e cofundadora da fintech de assistência ao consumidor Unicainstância. Os amigos a descrevem como competente e dedicada. “Pra mim, antes de tudo, amiga, companheira, birrenta, acolhedora, inspiradora, doce, amorosa, irmã”, disse a amiga Karen Santos em seu perfil na internet.

O sorriso de Sara é uma unanimidade entre todas as lembranças. Foi sempre acompanhada dele que a jovem advogada conquistou espaços importantes em viagens que fez para apresentar seu trabalho. Com Gilmar Bueno, fundou uma legaltech que atua na mediação online entre consumidores das classes C, D e E e empresas prestadoras de serviço na resolução de problemas em contas de casa e conseguiram chamar a atenção até da diva Beyoncé, que apadrinhou o projeto.

Na cultura do Candomblé, religião da qual faço parte, a morte não representa o fim, mas sim uma mudança de estado, de plano de existência. A morte é um momento de encontro da pessoa com seus ancestrais, e Sara se torna, para nós, uma ancestral. Ela está sendo acolhida e, aqui na Terra, fica a sua leveza, a lembrança de seu sorriso e a transformação que promoveu na vida de inúmeras mulheres como Maitê Lourenço que escreveu: “Fico triste pois a Sara não chegou a pisar com seus próprios pés nos Estados Unidos, coisa que ela queria muito, mas sei que ela alcançou e continuará alcançando nossos corações de forma genuína, profunda, verdadeira e com muita determinação, assim como ela sempre se apresentou. Descanse em paz Sara Silva Raimundo, seu legado continuará vivo”.

A família de Sara está necessitando de apoio financeiro para trazer o corpo de volta ao Brasil. Quem puder ajudar, as orientações estão neste post.

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