Tecnologia ancestral

Saudações, 

Hoje é um dia no futuro que foi sonhado pelos nossos ancestrais. 

Nessa encruzilhada em quem seus olhos encontram as minhas palavras, seu corpo dança.  Danço eu, dança você.  Vamos fazer de conta que estamos bem perto. Você me dá licença, e com a permissão do seu Ori, leio no seu semblante trejeitos herdados de um ancestral, o piscar de olhos, talvez um fogo azul cintilando atrás dos óculos quando se enfurece, a mão na cintura quando se coloca, o dedo em riste quando diz não. Leio a memória trêmula e enfurecida dos teus músculos, quando colocado de cara pro muro com as mãos na cabeça, o sorriso de canto de boca “igual o da sua mãe”, aquele gesto que lembra o parente antigo, e as pessoas dizem “é a cara do avô”.  Leio devagar e discretamente seu peito arfar com a mensagem que chega no whats up, seus ombros se encolherem de timidez, suas costas se curvarem pelo peso da submissão, seus pés se encostarem um no outro, o sangue nos olhos, o veneno, o corre, a pele se arrepiar diante de um cair de chuva, os olhos marejados por algo que só você, só você sabe.  Tudo isso numa fração de segundos, enquanto você pega o telefone e desbloqueia a tela.  Um mundo vasto que abriga nos seus gestos milhões de anos luz. É osso do ancestral que te põe de pé no “chão do mundo vivido”. É chamado que convoca sua presença na cena, e atualiza o software ancestral para rasgar o script escravocrata e ocupar seu verdadeiro papel na cena.  Ouça  os ecos do tambor, o wi fi  o mais poderoso  de todos os tempos, que se traduz nas pick ups, na caixa e no bumbo, que toca o bonde, abre seu plexo, e agora já estamos na pista, no auge do baile,  milhares  de pretos, em sintonia magistral, dançando “todo mundo igual sem errar”,  xirê que nos lava  a alma e restitui a dignidade  para vencer a maior batalha de todos os tempos:  a guerra pela posse do próprio Ori. É o  primeiro ato de um Déjá vu Afro futurista.

Foto  Felipe Romão

Déjá vu Afro futurista 1º ATO Ancestralidade High Tec

Déjá vu é o sopro dos antigos em nossos ouvidos dizendo, “não tente pertencer ao que não te honra”. O último lugar na fila dos ballets brancos, glamour de papéis escravizados, pó de arroz, disfarce na cor da Ori-gem, encarcerados no estereotipo do “crioulo doido”, algemadas na imagem da “nega maluca”, espremidos na camisa de força do aplauso que só vem se for para caricaturar orixá, fazer samba para inglês ver, fazer do corpo serviço sujo de delírios coloniais, e já com o espírito algemado dizer “sim sinhô”.  Aplausos cínicos que ofendem a linhagem, desdém elogioso que só vem com a dignidade parcelada em mil vezes, com juros de submissão e inferioridade embalados em papel crepom e capa de revista, apaziguando ego de feitores moderninhos, com o aval de esquerdas mancas.  

Mas o nervo, o musculo, o osso, sabe de onde veio. E re- age. O seu corpo lembra, a sua cabeça lembra e sua história reflete. E dança. Desminta com as vísceras, aceite ser avesso, ria alto, olhe no olho do mundo com um foda-se engatilhado, e na encruzilhada aqui estamos nós, um milhão de volts nesse encontro, onde travaremos a maior batalha de todos os Tempos. Guerrear para tomar posse do ORI, da própria cabeça. Na genealogia do gesto, encontramos espada em punho, rajada de metralhadora no ego do feitor, coragens e audácias. Amor.  “Não sinhô, não doutô. Cala a boca sinhá! ”. Hoje eu não estou na sua fila, hoje eu mastiguei sua algema e forjei no ferro um devir, hoje eu pisei na sua camisa de força, hoje eu vou puxar a cantiga da sua morte. Hoje eu vou enterrar a sua civilização, hoje eu vou dançar como dançaram meus ancestrais, com a tecnologia que a sua antropologia não alcança, analfabeto arrogante que não entende a alteridade.  E silêncio! Você não sabe nada sobre mim*! 

*( referencia Chaka Khan you don’t know about me)

 

“ Eu coloquei louvor na dança, seguro, meus pés desenharam futuro”

MC OBIGO

 

 Do sopro ancestral se ascendem lâmpadas para os pés. Negros de 2020.E no escuro da pele de Raquel Costa, o trompete de Donald Byrd escreve a história do começo de mundo, onde uma yaba de pele preta gerou a força dos nossos semblantes. Ela, Grajaú e Ketu, vibra na frequência das Batidas de KL Jay, pisa nas notas do tambor wi fi de Edvan Mota, e põe em cena presenças vivas dançadas num futuro lançado pela flecha grávida de horizonte. Ela iça a âncora do barco para uma viagem que, de navio negreiro, passará a ser um transatlântico chamado diáspora.  Nas águas, caminho aberto rimas forjadas pelo emissário de Ogum, Obigo, ourives do verbo, reza, cantiga para encorajar espíritos.  De fora da fila do sinhô, dançamos no chão da nossa dignidade.  Combinamos de estar perto no começo de tudo lembra? Olha, veja o petróleo diamante. Como é bonito a gente junto.  Como é poderosa a presença. Lança seu olho luz, sobre elas. Somos nós, eu e você. No escandaloso e obsceno lugar de poder, que os brancos não conseguem conceber. Esse véu na dança de Poliana Rodrigues, bandeira de Tempo que abre caminhos na memória. O corpo de baile, “lâmpadas para os pés, negros de 2020”.  Não, ainda não acabou. Mas preciso sair de cena, o espetáculo é só quando a porta da rua se abrir de novo. Mas já  sabemos, você eu eu, qual é o nosso lugar no mundo vasto fora da senzala. 

 

 Excelência de quê?

No Brasil (como não dizer?). Os lugares chamados de excelência em dança, tem uma patologia em comum. Dançam histórias do “povo”, falam de cura, especulam sobre ancestralidade, para dar conta da pobreza de seus repertórios. Quando esgotam a sua criatividade, vão beber na fonte dos mestres, dos nossos. Se apropriam de tecnologias afro diaspóricas, e formam corpos de baile onde a presença negra não fala, e está destinada ao fim da fila, ao exótico. É a mesma black face, atualizada. A tinta para empretecer a pele não está lá, mas o nosso movimento, a nossa técnica está presente, embranquecida, esterilizada. Acham lindo o passinho, o funk, a dança afro, desde que sirvam para ancorar seus processos, e depois coloca-las novamente na senzala artística, lugar de alegoria e estereótipo.  Vestem-se com o manto da importância e se querem vanguarda, determinam tendências (oi?). Piruetas de um ego enlouquecido, em espacates que rasgam o dinheiro público, afinal eles têm financiamento, cota e ação afirmativa desde sempre. E assim, pretos extremamente talentosos, brilhantes, diamantes, ficam relegados a um canto por não terem “técnica “o suficiente. Ou seria brancura o suficiente”.  Ora, tenha a bondade de ir se foder com vossa excelência branca! No pliê, por gentiliza. 

Honra a sua VERVE

A Verve é uma Cia de Arte Negra que conduz processos criativos a partir de preciosas tecnologias ancestrais. Um chão onde o corpo e presença a negra, em toda sua vasta diversidade tem um lugar que lhes honra.  Sou discípula da Kely Anjos, que por sua vez é discípula de Firmino Pitanga, que foi discípulo de Clyde Morgan. Temos linhagem e escola que a universidade não alcança, e como a VERVE há outras magistrais escolas. Vera Passos, Nildinha Fonseca, Inaicyra falcão, Zebrinha, Agusto Omolu, Mestre King, Mestre Pinguim, e para falar da nova geração Carol Ewaci, Tainara Cerqueira, Weligntom Campos, para citar alguns. Nesse novembro de um Tempo tão singular, extremo, seco, em que nossas forças são testadas, as tecnologias são medicinas de saúde mental e sobrevivência. É arte tradicional que tem escola  e linhagem, o google e a imitação não dão conta.  Tornar-se professor ou dançarino na cosmogonia africana leva mais tempo que um metrado e um doutorado, é matéria sofisticada, fina, que está inscrita em nossos corpos. Leva tempo para assimilar. Na cosmovisão africana dançar não é mero entretenimento. É rito de passagem, é o poder da presença, é cura. 

Só um sistema cuja base é o empobrecimento sistemático, e a venda de corpos, subestima esse lugar. Pela honra, dançamos a vida, a morte, a prosperidade, a dignidade. Pela Honra*, atravessaremos esse Tempo árido. O corpo é veículo de asé, força de realização.  O corpo é assentamento do espírito.  A qualquer lugar que te coloque em   subalternidade, volte algumas linhas atrás. “Não tente pertencer ao que não te honra”.  Você tem escola.

(referencia)

*Disco de MC OBIGO

Foto  Felipe Romão

 Aqui fala Leandra Silva. Oloya. Banhada em águas ancestrais.

Esse texto é dedicado à minha Mãe Arinda Silva Laurindo Roberto, que fez a passagem para outro plano, e hoje é parte do meu egbe no Órun.  A minha primeira e mais brilhante escola.  Bença Mãe.

Notas:  Déjá vu Afro futurista 1º ATO Ancestralidade High Tec é um espetáculo da CIA VERVE de Arte negra, criado em 2019, fruto a imersão em dança-afro contemporânea. No dia 14 de dezembro teremos uma exibição on line para convidados, acompanhem o nosso perfil.

 

DIREÇÃO GERAL, COREOGRAFIA E PESQUISA
Leandra Silva
ROTEIRO
Leandra Silva
CORPO DE BAILE 
Aline Napoleão
Diego Castro
Eduardo Araujo
Helen Fagundes
Isadora Santos
Kahwana Pantoja
Maria Clara Luiz da Silva
Maria Luisa Moura
Marina Mariá
Melissa Pina
Poliana Rodrigues
Raquel Costa
Taíze Sá 
DIREÇÃO MUSICAL
DJ KL Jay
Edvan Motta
CENOGRAFIA
Marieta Diniz
PERCUSSÃO
Edvan Mota
Guilherme Ribeiro
Matheus Marinho
RAPPER 
Obigo
DIREÇÃO CÊNICA
Alina Duran
FIGURINO
Alexandre dos Anjos
MAQUIAGEM
Luana Sereia
TÉCNICO DE SOM
Oallison DjNegrito
ILUMINAÇÃO
Eduardo Cabral
PRODUÇÃO EXECUTIVA
Duany Santos
ASSISTENTE PRODUÇÃO
Diego Castro
Heloisa Feliciana
TEXTOS 
Leandra Silva
Carla Akotirene
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Isadora Santos
SOCIAL MEDIA E DESIGN GRÁFICO
Poliana Rodrigues
SEMINÁRIOS TEÓRICOS
Antônio Luiz de Arruda Junior
Fábio Tineu
Leandra Silva

Bailarina, coreógrafa, jornalista, professora e pesquisadora, Leandra Silva atua na criação e condução de processos artísticos a partir de singulares tecnologias ancestrais. É graduada em jornalismo pela UFBA, iniciada em dança negra contemporânea por Kelly Anjos, há 20 anos, uma linhagem e escola cujos passos vêm de Firmino Pitanga,Clyde Morgan e metre Pinguim. É membro do programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Negras Femininas, pelo Fundo Baobá, fundadora, diretora e coreógrafa da Cia VERVE de Arte Negra.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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