Tiramos selfies com o goleiro Bruno e jogamos bombas em Richarlyson. Por Nathalí Macedo

Por mais que eu me esforce, é difícil acreditar que vivemos em um país em que matar e esquartejar uma mulher é aceito – mais do que isso, é louvável, para alguns – mas amar alguém do mesmo sexo não o é. 

no DCM

O comentário introdutório amargo é sobre as bombas jogadas na sede do Guarani em protesto homofóbico contra a contratação do jogador Richarlyson, que já vinha sendo atacado nas redes sociais.

O detalhe é que o jogador não se declarou gay uma vez sequer em sua vida (e nem tem essa obrigação: é pago para jogar futebol, e não para transar com mulheres). 

Se o tivesse feito, contudo, os protestos homofóbicos – que não deixariam de serem lamentáveis, é claro – dariam ensejo à resistência de um homossexual em um ambiente tão machista quanto o futebol brasileiro, mas sequer isso existiu.

O jogador, na verdade – que já havia sido alvo de insinuações do ex-dirigente do Palmeiras José Cyrillo Júnior, em um programa de televisão – apenas se atreveu a participar do programa Dancing Brasil, na Record, onde dançou com a ginasta Jade Lima com trejeitos afeminados demais para a homofobia da torcida. 

Enquanto isso na arquibancada do Boa Esporte, Bruno, o feminicida que jogou os pedaços de Eliza Samudio aos cachorros para esquivar-se de pagar a pensão alimentícia do filho, recebe aplausos entusiasmados de cidadãos de bem.

A incredulidade é quase inevitável.

O colapso em nossos valores não é culpa das feministas-abortistas-misândricas, da ditadura gayzista ou da doutrinação comuna, como brada o conservadorismo: ele é, aliás, muito anterior a tudo isso. 

Começou quando a igreja católica – a maldita inventora de nossa moralidade – sacramentou que seres humanos não podem dispor de seus corpos como bem entenderem – nem para transarem com pessoas do mesmo sexo, nem para dançarem com “trejeitos afeminados” em um programa de TV. Dentro e fora das arquibancadas, desde então, preconceitos são perpetuados e externados com uma violência cada vez mais brutal.

No futebol masculino, entretanto, há um agravante: Em campo, há homens. Nas arquibancadas, há uma maioria de homens. Mas não apenas homens: Homens socializados para todas as masculinidades tóxicas. Homens criados para gostarem de futebol, cerveja, churrasco e bunda.

Homens que acreditam na necessidade primordial de defenderem sua honra – que consiste basicamente em defenderem a sua “macheza”, que parece ser o seu maior tesouro. Homens que tiram selfies com feminicidas. 

A relação entre futebol e “masculinidade” – no sentido mais vulgar do termo – permite dizer que as arquibancadas dos estádios de futebol abrigam não só homens, mas homens resistentes à aceitação das diferenças – e que, como se não bastasse, transformam essa resistência em ódio e violência.

Os insultos homofóbicos contra Richarlyson não são inéditos. O Rio Claro, clube que contratou-o antes do Guarani, lançou até uma campanha para atrair pessoas de todas as orientações sexuais para o estádio, porque gritos de “bicha” e “viado” (vocês não saíram da quinta série?) eram comuns na arquibancada.

Pergunto-lhes: Como? Se, em campo, um jogador é agredido e atiram-lhe bombas, o que aconteceria com um homossexual que dividisse a arquibancada com tantos trogloditas homofóbicos? (Algo me diz, inclusive, que eles prefeririam balada drag, mesmo porque ninguém merece festa hétero).

Em vez de imitarem a campanha ineficiente e até meio cínica do Rio Claro Esporte Clube, o Guarani poderia ter uma ideia melhor: passar a punir com expulsão torcedores que manifestassem comportamentos homofóbicos em seus jogos, mas isso seria difícil demais, porque eles são muitos. Talvez, se o fizesse, fosse o primeiro time sem torcida do Brasil. 

Por aqui, falta ainda muito para o bom senso ser escalado.

+ sobre o tema

PT e movimento social perdem Sonia Leite

Em homenagem a Sonia Leite (na foto, no fundo,...

Transexual é perseguida e assassinada a caminho da academia em MG

Nicolly Banks já havia sofrido uma tentativa de homicídio...

Mulher engravida do próprio irmão para ajudar cunhada estéril

Um inglesa topou gerar o filho do próprio irmão...

Depois de ser ofuscada pelo preconceito, Tracey Normam a primeira modelo negra e trans volta a brilhar

Tracey Normam foi a primeira modelo negra e trans a ganhar destaque na indústria da moda...

para lembrar

Trabalho doméstico: tempo de mudanças necessárias

Texto de Cecília Santos. Com a promulgação da PEC das...

Roda de Conversa: Mulher, raça e afetividades

O grupo de pesquisa Corpus Dissidente promove a roda...

Travestis e trans de São Paulo receberão bolsa qualificação

Benefício será de um salário mínimo mensal. Além do...
spot_imgspot_img

Pesquisa revela como racismo e transfobia afetam população trans negra

Uma pesquisa inovadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), intitulada "Travestilidades Negras", lança, nesta sexta-feira, 7/2, luz sobre as...

Aos 90 anos, Lélia Gonzalez se mantém viva enquanto militante e intelectual

Ainda me lembro do dia em que vi Lélia Gonzalez pela primeira vez. Foi em 1988, na sede do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), órgão...

Legado de Lélia Gonzalez é tema de debates e mostra no CCBB-RJ

A atriz Zezé Motta nunca mais se esqueceu da primeira frase da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, na aula inaugural de um curso sobre...
-+=