Pernalonga, negro. Scooby-Loo, negro. Elmo, certamente negro.
Por SARAH HAGI, do Vice
Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Canadá.
Eu e um amigo compartilhamos um interesse profundo por um tipo específico de cultura da internet. Nossa correspondência é exclusivamente trocar ilustrações toscas de personagens de desenho animado da nossa infância usando street wear e pessoas fantasiadas de personagens dançando (tudo isso começou com nosso amor compartilhado por este meme do Pernalonga). Enquanto procurávamos por mais memes, meu amigo me mandou essa screenshot:
E eu respondi: “Ele é negro, óbvio”.
Depois de pensar um pouco nisso, percebi que, para muita gente, esse não é um fato inerente. Pernalonga é um coelho, e mesmo sendo antropomorfizado, a suspensão da descrença só vai até um certo ponto para algumas pessoas. Isso pode não ser amplamente conhecido pelos brancos, então logo depois de falar com meu amigo sobre o Pernalonga ser negro, me virei para meus colegas (a maioria brancos) e fiz a pergunta.
“Você acha que o Pernalonga é negro?”, perguntei, mas a maioria não entendeu a pergunta. “É uma pegadinha?”, um cara branco suspeitava. “Não”, respondi. “É uma pergunta simples de sim ou não.”
Depois de várias conversas envolvendo brancos tentando não dizer nada de errado, alguém finalmente perguntou como eu sabia – uma pergunta para a qual eu realmente não tinha uma resposta. Eu só sabia. Depois de explicar minhas razões vagas (ele simplesmente é), alguns entenderam, mas saí dessas interações percebendo que não tão simples assim.
Na minha cabeça, eu não tinha dúvida que o Pernalonga é um homem negro. É algo óbvio que eu sempre soube. O céu? Azul. A grama? Verde. Pernalonga? Muito negro. Mas isso não termina no Pernalonga. Apesar do Perna ser um dos personagens mais conhecidos de todos os tempos, eu sei no meu coração que muitos outros personagens antropomorfizados são negros. A melhor maneira de descrever isso seria como um tipo de sinestesia, mas com raça e desenhos. Então fiquei atualizando obsessivamente no meu celular uma lista com todos os personagens que eu sentia que eram negros. Agora tenho mais de 20 personagens da minha infância, e incluindo mais. Bob do Reboot, Alan Powers de Arthur, a Pantera Cor-de-Rosa, Elmo – todos negros.
Pernalonga
Taz, o Diabo da Tasmânia
Piu-Piu
Pateta
Max
Bob Esponja (quase branco)
Bob (do Reboot)
Elmo
Cookie Monster (caribenho)
Zaboomafoo
Arthur (meio branco)
O Cérebro (do Arthur)
Muffy (do Arthur, parda)
Lola Bunny
Babar
Luigi (do Mario)
Jerry (Tom e Jerry)
Algumas das Tartarugas Ninjas (Michelangelo, talvez o Raphael)
Scooby-Loo
Pica-Pau
Pantera Cor-de-Rosa
Optimus Prime
Você pode não acreditar e achar que estou ficando louca, mas saiba que não sou a única que pensa assim. Na verdade, não conheço uma pessoa negra que não atribua raça para personagens não humanos. As únicas vezes em que alguém negro não entende do que estou falando é quando não concordamos sobre a raça de um personagem (o Frangolino, por exemplo, é um caso controverso).
No começo do ano, o Noisey publicou uma matéria dizendo que Pateta: O Filme era um clássico negro millennial. O autor argumentava de um ponto de vista estético, citando vários indicadores de negritude no filme. “Da protagonista do filme ser uma garota chamada Roxanne, do garoto branco chamado Bobby (dublado por Pauly Shore) se meter em tanta confusão quanto o Max, mas se preocupar muito menos se os pais vão descobrir.” Faz muito sentido.
Esse é um tópico muito discutido online. No Twitter, Alyson, conhecida como fillegrossiere, já falou muito sobre o tema. Depois de tuitar que o Pernalonga era negro, Alyson me disse que “Vários homens me taguearam para explicar que o Pernalonga era um coelho”. Quando perguntei como ela sabia quem era negro (os personagens dela, como na opinião de muita gente, incluem Skeeter do Doug, Pateta e o Max), ela disse: “Não sei. Mas sempre me pareceu óbvio quem era negro”.
Irritada com o monte de gente ao meu redor não sacando essa ideia, fui ao Twitter para falar com mais negros sobre o tema. Está claro que esse sentimento é comum para muita gente, mas eu precisava saber o porquê. Pensando nas minhas próprias razões, tenho certeza que a falta de diversidade racial no entretenimento infantil tinha um grande papel nisso.
Em minutos, meu inbox foi inundado por outras pessoas querendo falar sobre personagens de desenho negros – no final do dia, eu tinha recebido 40 mensagens diretas e e-mails de negros do mundo inteiro. Alguns dizendo na linha de assunto “Arthur era 100% negro” e “Babar era negro”.
O comediante do Brooklyn Jaboukie Young-White me mandou um exemplo muito intrigante: “Sandy Bochechas ( Bob Esponja) Piccolo ( Dragonball Z) são negros”. Para Jaboukie, a história de Piccolo é muito negra. “Seu planeta natal, Namek, foi destruído por colonizadores; ele sempre se sentia meio de fora entre seus amigos não namekianos; ele era filho de pai solteiro. Ele também estava sempre fazendo trabalho emocional por pouca recompensa.” Muitos e-mails compartilhavam esses mesmos pensamentos – personagens que as pessoas sentiam que eram negros tinham características tradicionalmente negras.
Piccolo via YouTube.
Lisa Nakamura, professora da Universidade de Michigan e autora que se foca em raça e como isso é retratado na internet, acredita que há muitas razões para os brancos não estarem familiarizados com o conceito de atribuir raça a personagens de desenho animado.
“Pessoas brancas não querem ver raça em lugar nenhum”, me disse Nakamura. “Elas são desencorajadas externa e internamente de notar raça, porque têm medo de serem chamadas de racistas.” Não apenas isso, mas Nakamura me explicou que brancos (como qualquer pessoa não branca pode dizer) geralmente evitam conversas sobre raça. “O risco de ser visto como racista supera os benefícios que podem vir de ter esse tipo de diálogo”, ela acrescentou.
“Além disso, por que eles precisariam entender a necessidade de se identificar com personagens não humanos atribuindo uma raça a eles? Quando se trata de entretenimento, brancos nunca tiveram que se imaginar sendo estrelas de filmes e programas, porque sempre estiveram ali.”
Numa postagem no Tumblr, o artista de Nova York Jayson Musson argumenta que Panthro do ThunderCats é um herói afro-americano não reconhecido. Como uma criança dos anos 80, Musson me explicou que assim como Panthro, Papai Smurf e ET (o alienígena) também eram negros. “Não ligo para o que os outros dizem”, ele me explicou. “Tenho certeza que isso tem muito a ver com personagens negros não serem considerados nem remotamente marcantes. Na minha infância, isso simplesmente não estava em cena.”
E muita gente mencionou que nada disso foi ensinado a elas – esses personagens não eram abertamente codificados como negros. “Isso tem que ser abraçado, não interpretado ou enfiado na cabeça das crianças”, me disse Musson. “Para mim, era algo que eu tinha que entender eu mesmo.”
Nakamura acredita que um motivo para achar que esses personagens não humanos são negros tem a ver com “se encontrar em lugares onde você não deveria estar”. É quase um ato de resistência. Não nos víamos refletidos nos programas que amávamos quando criança, então criamos nossas próprias narrativas, apesar de nos mostrarem que nossa representação não importava.
Optimus Prime – Imagem via YouTube.
Na última semana, pensei nessa história do Pernalonga e outros personagens serem negros quase sem parar. E mesmo que na superfície esse assunto seja uma coisa engraçada e boba – há uma camada de tristeza que vai além disso. Como Nakamura mencionou, isso veio de literalmente não nos vermos refletidos no que amávamos.
Tenho nove sobrinhas e sobrinhos na idade de terem personagens de TV favoritos. Quando assisto TV ou Netflix com eles, fica óbvio que as coisas estão melhorando lentamente quando se trata de diversidade. Estamos vendo mais crianças não brancas em filmes e desenhos, mas não tantas quanto deveriam. Sendo assim, enquanto me conscientizo mais de como a falta de representatividade afetou minha própria infância, me esforço para escolher programas e filmes com personagens abertamente negros ou não brancos. Quero que meus sobrinhos possam se ver na tela.
Enquanto cuidava de uma sobrinha recentemente, eu queria colocar um filme, mas o Netflix para crianças é insuportável – são dezenas de filmes voltados para meninas estrelando princesas loiras. Então colocamos Cada um na Sua Casa, uma animação da Dreamworks sobre uma menina chamada Gratuity “Tip” Tucci, que tenta fugir enquanto alienígenas invadem a Terra. Notando que o filme era estrelado por uma menina negra, minha sobrinha ficou radiante.
“Uau!”, ela exclamou. “Ela parece comigo!”
Tradução: Marina Schnoor