Toni Morrison. A literatura negra americana ficou órfã de mãe

A primeira mulher negra a conquistar o Nobel da literatura morreu na noite de segunda-feira. Toni Morrison, autora de Beloved, tinha 88 anos.

Por José Cabrita Saraiva, Do JornalI

Barack Obama apresenta a Medalha Presidencial da Liberdade para autor de Toni Morrison durante uma cerimônia em 29 de maio de 2012 na Sala Leste da Casa Branca, em Washington. O prêmio é a mais alta honraria civil do país.
Barack Obama apresenta a Medalha Presidencial da Liberdade para autor de Toni Morrison durante uma cerimônia em 29 de maio de 2012 na Sala Leste da Casa Branca, em Washington. O prêmio é a mais alta honraria civil do país. (AFP PHOTO / Mandel NGAN)

Quando recebeu o prémio Nobel da literatura de 1993, Toni Morrison terminou o seu discurso perante a Academia Sueca com estas palavras: “Nós morremos. Talvez seja esse o significado da vida. Mas fazemos linguagem. Essa pode ser a medida das nossas vidas”.

A autora multipremiada, que denunciou e combateu o racismo através da sua obra e das suas intervenções públicas, morreu na noite desta segunda-feira, dia 5 de agosto, num hospital de Nova Iorque, cidade onde residia. Tinha 88 anos. A causa de morte ainda não foi revelada.

Na casa de banho social do seu apartamento Morrison tinha emoldurados dois documentos que diziam muito sobre si. Em cima do lavatório, no lugar do espelho, a carta da Academia Sueca a anunciar a atribuição do Nobel. Na parede oposta, uma notificação que dava conta da proibição do seu livro Paradise, de 1997 (o primeiro que publicou depois do Nobel), nas prisões do Estado do Texas, por receio de encorajar motins entre os reclusos.

Nascida e criada numa América onde a segregação racial era a norma, Toni Morrison deu voz aos negros e escreveu sobre o estigma que podia ser nascer com a cor da pele errada. Mas esse não foi certamente o seu caso.

A segunda de quatro filhos, Chloe Ardelia Wofford nasceu a 18 de fevereiro de 1931. O pai, metalúrgico, tinha-se mudado da Georgia, no sul, para o Ohio (no nordeste dos EUA) depois de ter assistido, aos 15 anos, ao linchamento de dois negros, um episódio que o traumatizou e que não comentava com a família. A mãe era doméstica e adorava cantar. “A minha mãe cantava a toda a hora», recordou a autora numa entrevista à revista Granta. “Tinha a voz mais bonita que alguma vez ouvi. Se estava a estender a roupa, cantava. Se estava a lavar a loiça, cantava”. Talvez por isso a sonoridade das palavras fosse tão importante para a filha, que escrevia os livros para serem lidos em voz alta.

Quanto Chloe tinha apenas dois anos, a casa onde viviam foi incendiada pelo senhorio, por causa de um atraso no pagamento da renda. A forma digna como os pais reagiram ficou-lhe para sempre como um exemplo.

Apesar da vida modesta que levavam, a mãe era sócia do Book of the Month Club (o equivalente americano do Círculo de Leitores) e tinham a casa cheia de livros. “Em nossa casa, havia livros por todo o lado”, recordou a escritora, que gostava também de lembrar um avô que tinha lido a Bíblia de uma ponta à outra cinco vezes, apesar de na altura os negros estarem proibidos de o fazer.

Pequenas placas nos autocarros Aos 12 anos Chloe foi batizada e adotou o nome de Anthony (de Santo António, de Pádua ou de Lisboa, consoante a perspetiva). Foi a primeira pessoa da sua família a frequentar o ensino superior – fê-lo na Howard University, uma universidade para negros em Washington, onde os amigos a tratavam por ‘Toni’ – e o nome ficou. A capital americana era então uma cidade fortemente segregada. “Em Washington havia uns grandes armazéns onde nós – raparigas de cor – podíamos ir à casa de banho. […] Não nos deixavam usar a casa de banho em mais nenhum sítio. E havia pequenas placas nos autocarros: ‘Só Brancos’. Roubei uma e mandei-a para a minha mãe”.

Completada a formação universitária, Toni Morrison deu aulas de Inglês na universidade – onde acabaria por conhecer o marido, um arquiteto de quem teve dois filhos. Depois de se separarem, começou a trabalhar como editora, publicando e promovendo escritores negros que mais tarde se tornariam também eles muito conhecidos.

A declaração de amor de Obama Foi já perto dos quarenta anos que começou a escrever. Acordava às quatro da manhã para poder fazê-lo sem distrações, antes de se dirigir para o emprego na Random House, em Manhattan. Em 1970 publicou o seu primeiro livro, The Bluest Eye, sobre uma rapariga negra que suspirava por ter olhos azuis. “Escrevo sobre e para outras pessoas negras”, costumava dizer. “E se o que escrevo for suficientemente bom, será lido e apreciado por outros, que não sejam afro-americanos”.

Em 1977, Song of Solomon conquistou a crítica e arrecadou o National Book Critics Circle Award, um dos mais altos galardões literários nos EUA, catapultando-a para a fama.

A partir daí, continuaria a afirmar-se como uma das mais proeminentes escritoras norte-americanas. Dez anos depois, em 87, publicava Beloved, a história chocante de uma mulher escrava que consegue escapar ao cativeiro e, na iminência de ser apanhada, mata o filho bebé para que ele não sofra os horrores da escravatura. O enredo inspirava-se em factos reais, relatados num artigo encontrado por Morrison num jornal de 1856 e incluído na antologia The Black Book, sobre a experiência dos negros na América.

Beloved (recentemente publicado em Portugal pela Presença) tornou-se um sucesso estrondoso tanto de vendas como de crítica: esteve 25 semanas consecutivas no top dos livros mais vendidos e seria distinguido com o Pulitzer de ficção em 1988, entre muitos outros prémios. Considerado por muitos o melhor romance americano do final do século XX, em 1998 foi adaptado ao cinema, com Oprah Winfrey no papel principal. Nenhum dos dois romances subsequentes da trilogia (Paradise e Jazz) atingiria um nível de sucesso idêntico.

O prestígio entretanto adquirido abriu-lhe as portas das principais universidades, como Princeton, onde deu palestras até 2005. Em 2010 perdeu um dos filhos, vítima de cancro do pâncreas. Em 2012, recebeu de Barack Obama a medalha presidencial da liberdade, a mais alta honra concedida a civis. Na cerimónia, Obama aproximou-se e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Questionado sobre o que lhe dissera o Presidente Morrison não conseguia recordar-se – a sua memória estava em branco. Acabaria por ser o filho, noutro encontro, a perguntar a Obama: ‘O que segredou à minha mãe? Ela esqueceu-se. Ainda se lembra do que lhe disse?’. “Claro que lembro”, respondeu Obama. “Disse-lhe: ‘I love you’”.

+ sobre o tema

Sobre cabelos, relacionamentos e outras coisas!

Após uma atividade na minha universidade em celebração ao...

Mãe preta pode ser? Mulheres negras e maternidade

Débora Silva Maria, do Movimento Mães de Maio, há...

Quem vestiu a Globeleza?

Enviado para o Portal Geledés Engana-se os que acham que...

para lembrar

Coletivo Meninas Black Power realiza I Seminário Internacional Encrespando na PUC-Rio

O Coletivo Meninas Black Power apresenta o I Seminário...

Mulheres negras preparam Marcha nacional para exigir direitos

“Nosso feminismo se inspira nas guerreiras africanas. Levantar a...
spot_imgspot_img

Em autobiografia, Martinho da Vila relata histórias de vida e de música

"Martinho da Vila" é o título do livro autobiográfico de um dos mais versáteis artistas da cultura popular brasileira. Sambista, cantor, compositor, contador de...

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Morre Maryse Condé, grande voz negra da literatura francófona, aos 90 anos

Grande voz da literatura francófona, a escritora de Guadalupe Maryse Condé morreu na madrugada desta terça-feira (2), segundo informou à AFP seu marido, Richard Philcox. A causa...
-+=