‘Tortura é ferida que não cicatriza’, diz Amelinha, vítima da ditadura

“Mamãe, por que você está azul?”. A pergunta feita pela filha Janaína, aos 5 anos, ainda ecoa no ouvido de Maria Amélia de Almeida Teles quase 50 anos depois. Aos 77 anos, Maria Amélia é Amelinha Teles, uma das centenas de mulheres – muitas mães ou grávidas – que foram torturadas durante o período da ditadura militar no Brasil. Estima-se que foram presas mais de 800 mulheres, mas o número real deve ser bem maior, já que muitas prisões eram clandestinas.

Em dezembro de 1972, aos 27 anos, Amelinha não estava azul. Ela estava roxa. Tinha o corpo coberto por hematomas. Seus algozes foram covardes a ponto de, após torturá-la por horas na chamada “cadeira de dragão”, entrarem na sala de tortura do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) levando os dois filhos da ativista: além de Janaína, estava Edson, que tinha 4 anos. A cadeira de dragão era uma cadeira elétrica.

A prisão de Amelinha, do então marido, César Teles, e de Carlos Nicolau Danielli, que ela viu ser assassinado, aconteceu em 28 de dezembro de 1972. Os três eram do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e escreviam para um jornal clandestino que denunciava a ditadura. O DOI-CODI ficava “camuflado” nos fundos de uma delegacia na rua Tutóia, em São Paulo. O trio foi “recebido” pelo coronel Carlos Brilhante Ustra, que agrediu Amelinha e depois desapareceu com os filhos dela.

Amelinha hoje é integrante da União de Mulheres de São Paulo e do Movimento Promotoras Legais Populares. Ela prepara um livro de contos infantis que escreveu na prisão para um dia contar aos filhos – sem saber se estavam vivos ou não. Para a jornalista e ativista, é necessário explicar às novas gerações o que foi a tortura e o regime militar para evitar que se repitam: “Vejo com preocupação a apologia da tortura hoje.”

A seguir, a entrevista com Amelinha Teles.

UNIVERSA – Quais são suas lembranças desse episódio terrível que foi encontrar seus filhos após ser brutalmente torturada?

AMELINHA TELES – Meus filhos foram levados até mim quando eu estava na cadeira de dragão (utilizada por torturadores para dar choques) nua, vomitada, urinada, evacuada. Na cadeira de dragão você leva muito choque, colocam fios elétricos na vagina, no ânus, dedos, punhos, dentro do ouvido, e tem um fio solto que eles passam na boca, mamilos, umbigo. Eu estava num estado de penúria. A sensação era de morte o tempo todo, aquela máquina ligada com choque forte, uma situação terrível. Minha irmã passou por isso também estando grávida. Quem nos salvou foi a Anistia Internacional.

Quando vi meus filhos, pensei: esses torturadores e este aparato da ditadura são piores do que eu imaginava. Eu recebia notícias, achava que podia acontecer algo comigo, vivia sob a ditadura, tinha uma opinião contrária e manifestava isso. Agora, pegar criança, mulher grávida? Eu pensei: realmente eles querem te desumanizar, tirar a humanidade. A minha e a da sociedade, como se nós não valêssemos nada. Temos que lutar pela democracia. As pessoas têm o direito de ter opinião. O objetivo da tortura era não permitir que eu tivesse opinião.

Quem era a Amelinha aos 27?

Eu era militante do Partido Comunista do Brasil e trabalhava na imprensa clandestina porque era proibido à imprensa veicular informações dos fatos que estavam acontecendo. Ao chegar no DOI-CODI, Ustra me deu safanão, me jogou longe e disse: “Foda-se, sua terrorista”. Isso fica até hoje no meu ouvido. Fui levada pra dentro da delegacia e ali fui torturada, levei choques, palmatória, fiquei no pau de arara, sofri afogamento.

Quem é a Amelinha hoje?

Tortura é uma ferida que não cicatriza. Esta ferida, de vez em quando, sangra. Há momentos em que você tem recaídas. É um trauma pra vida toda: sou sobrevivente, sou vítima, sou lutadora, sou militante, sou feminista, porque sou deste mundo e participo do que está acontecendo. A tortura te maltrata muito. Eu tenho uma família sequelada, sou parte desta sequela. Meus filhos, meu sobrinho, todos têm traumas. A população tem que ter direitos, eu luto por esses direitos, esse é o meu caminho, o meu norte. Sou da Comissão de Desaparecidos Políticos.

Como você define a tortura?

A tortura é quando o Estado desenvolve estratégia política de combate ao tal “inimigo interno”, que é a própria população. Estado contra a população, usando para tortura agentes pagos pelo Estado. Estado destruidor, Estado exterminador de uma população. Não dá para dizer [como o ministro Luís Carlos Gomes Mattos, presidente Superior Tribunal Militar] que “passa a Páscoa muito bem” porque isso [a tortura da ditadura] é bobagem. Não, não é bobagem.

O que aconteceu com seus filhos? Quanto tempo você ficou presa?

Fiquei no DOI-CODI três meses, deixaram meus filhos lá por 15 dias.

Depois o Ustra tirou a minha guarda dos meus filhos, você acredita? Ele levou meus filhos pra casa de um delegado, daí fiquei seis meses incomunicável, sem saber onde eles estavam. Se estavam vivos ou não.

Me mandaram para o Dops, onde fiquei na cela 3 – que era cela das mulheres. Eu ficava inventando histórias pra contar pros meus filhos, eram contos que vou publicar agora. Depois de 6 meses, o advogado Virgílio Lopes, muito corajoso, apareceu no Dops, pediu para me chamar, me jogou papel e caneta e falou: “Escreva seu nome”. Ele então fez uma procuração, virou meu advogado – e também a Rosa Cardoso, do mesmo escritório. Ela conseguiu uma visita dos meus filhos. Daí fui para outro presídio, do Hipódromo, com outras 22 presas políticas. Eu era mãe, a Eleonora Menicucci era mãe também, a Linda Tayah teve um bebezinho na cadeia.

Como você encontrou forças para sobreviver à tortura?

Quando eu estava muito fraquinha na cela, entre a morte e a vida, eu pensava: “Não! Eu vou ter que viver pra cobrar um dia desses caras! Naquele tempo tinha uma música que falava “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, e eu pensava: “vou fazer isso”. Essa música tocava na tortura, eles colocavam música alta para as pessoas não ouvirem os gritos.

Eles falavam que minha filha estava num caixão e perguntavam se eu queria caixão rosa ou branco pra ela.

Tinha um torturador que me estuprou, Lourival Gaeta, que ainda colocou nome da filha dele de Janaína, nome da minha filha. Meu filho é Edson Luis Teles.

Como foi o reencontro com seus filhos quando você saiu da prisão?

Senti que eles me estranhavam e eu os estranhava porque cresceram, estavam diferentes.

Meu filho morria de medo, quando aluguei uma casa e fiquei com eles, se tocava a campainha ele ficava morrendo de medo, corria pro banheiro. Precisei de ajuda para recuperar os dois.

Você era do Partido Comunista do Brasil. Você oferecia algum risco? Afinal o que é ser comunista?

Ser comunista, pra mim, é ser alguém que busca justiça social, igualdade, que quer que esse mundo seja melhor, que tenha pão e rosas pra todo mundo. Muitos morreram, como o Danielli, pra não entregar ninguém. Ele salvou a gente porque se responsabilizou por tudo e nos salvou. Terrorista foi o Estado brasileiro na ditadura. Quem nos torturou e matou foram o Exército, a Marinha, a polícia, a Aeronáutica. O Estado tem que defender todas as pessoas pelo fato de serem humanas. Não quer dizer que as pessoas não sejam passíveis de serem processadas, condenadas ou presas. Existem instrumentos legais pra isso, o que não se deve fazer é usar tortura, espancamento e morte.

Como vê o momento atual do Brasil?

Vejo com muita preocupação. É muito grave você ter a autoridade máxima do presidente da República, junto com ministros, que se manifestam no sentido de considerar válidas a violência e a tortura praticadas na ditadura ou de não reconhecer que isso aconteceu, banalizar e ser conivente. Existem tratados internacionais de direitos humanos, protocolos de erradicação da tortura que são mundiais e o Brasil é signatário. Tortura é crime de lesa-humanidade e é imprescritível, porque é uma ferida na sociedade. Não é só a pessoa torturada que sente os efeitos, é toda a sociedade.

A luta continua?

A luta continua porque esta página ainda não foi virada. A ditadura é um assunto que está aí presente. Mostraram agora os áudios do STM, de 50 anos atrás, e o que eles revelaram causa ofensas. Há a necessidade de esclarecer isso de uma vez por todas. Hoje não era mais para eu estar falando de ditadura militar. Mas quem provoca isso? Eles mesmos. Isso é História e não podemos dar as costas para ela. As pessoas não podem achar que porque nasceram agora não têm nada a ver com isso. Queremos construir um país que não seja de tanta violência e de tanta injustiça. Podemos viver melhor, eu acredito no Brasil.

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