Trabalho degradante é marca da indústria bilionária do carnaval

O povo do samba sabe quanto é raro contar com amparo, cuidado, assistência do poder público, de empregadores, das agremiações

Faz quatro décadas, Martinho da Vila compôs para a escola de samba que o batiza o conjunto de versos em exaltação à gente que faz o espetáculo mais importante da cultura brasileira. O artista invocava glória aos que, no ano inteiro, trabalham em mutirão para materializar a festa. São escultores, pintores, bordadeiras; carpinteiros, vidraceiros, costureiras; figurinista, desenhista e artesão. Essa “gente empenhada em construir a ilusão” — como nos versos de “Pra tudo se acabar na quarta-feira” da Unidos de Vila Isabel — segue explorada numa cadeia produtiva que, em 2024, rendeu R$ 5 bilhões em movimento financeiro e R$ 200 milhões em arrecadação de ISS pelos serviços relacionados à folia, segundo estimou a própria Secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico. Neste ano, com o calendário alongado do feriado em março, deverá render ainda mais.

As condições degradantes a que profissionais do carnaval são submetidos foram expostas em praça pública por esses dias. A classificação foi usada pelo Ministério Público do Trabalho em nota sobre a investigação aberta em decorrência do incêndio nas instalações da Maximus Confecções. No prédio em Ramos (Zona Norte) — que operava com alvará emitido por autodeclaração, sem autorização do Corpo de Bombeiros e com ligação irregular de energia elétrica, segundo a Polícia Civil —, estava instalada uma linha de produção de uniformes, trajes militares, fantasias e camisas de escolas de samba. O fogo, na manhã da quarta-feira, destruiu material, equipamentos e peças prontas. Deixou 21 trabalhadores feridos, dos quais nove ainda internados em estado grave, ontem.

Incêndio atinge confecção de roupas do carnaval em Ramos, Zona Norte do Rio — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

As imagens assustadoras levam a crer que, por milagre, não houve mortos. Vítimas que escaparam do pior, em entrevistas, agradeciam a Deus, em primeiro lugar. É certo que, por essas bandas, muita gente atribui à fé, ao invisível, tanto a fortuna quanto o infortúnio menor. O povo do samba sabe quanto é raro contar com amparo, cuidado, assistência do poder público, de empregadores, das agremiações. O carnaval, como tudo no país, reproduz cada dimensão das desigualdades brasileiras. Chegamos ao primeiro quarto do século XXI, e quem monta a festa segue recebendo a parte mais minguada do bolo. Migalhas, na verdade.

Vimos anteontem trabalhadores sem uniforme, equipamentos de proteção individual e rotas de fuga. Homens e mulheres, todos pobres, quase todos pretos, que dormiam no serviço, escaparam das chamas por uma fresta de janela arrombada às pressas por bombeiros. Safaram-se do terror com pés em chinelos e corpos cobertos de fuligem; descamisados e desrespeitados. É vergonhoso a festa que apresenta o Rio de Janeiro e o Brasil ao planeta ser forjada na exploração de uma mão de obra mal remunerada, sem direitos, condições de saúde nem segurança no trabalho.

Não foi caso isolado. O trabalho degradante é marca da indústria do carnaval, sobretudo nas divisões inferiores. Três das agremiações mais afetadas pelo incêndio (o tradicionalíssimo Império Serrano, a Unidos da Ponte e a Unidos de Bangu) desfilam na Série Ouro, sexta e sábado de carnaval no Sambódromo. São escolas de receitas limitadas e estrutura precária. Produzem alegorias e adereços em barracões mal-ajambrados. Terceirizam a fabricação das fantasias, daí a concentração de trabalhadores nas instalações como as da Maximus, às vésperas do carnaval. Nas séries Prata e Bronze, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, a situação ainda é mais dramática.

A dúzia de escolas do Grupo Especial — que neste ano se dividirá em três dias de apresentação (domingo, segunda e terça) — tem, desde 2006 a Cidade do Samba, a megafábrica de alegorias, adereços, fantasias e sonhos. Ali, as condições são melhores, mas distantes do adequado e nunca livres de riscos. Os acidentes com fogo contam-se em dezenas. Em 2011, um incêndio devastou os barracões de Acadêmicos do Grande Rio, Portela e União da Ilha do Governador. Mais de 8 mil fantasias foram destruídas.

Como o trio deste ano, as três escolas de 2011 também ficaram fora da disputa, não foram rebaixadas. O governador Cláudio Castro anunciou adição de R$ 3 milhões no patrocínio à Série Ouro. O prefeito Eduardo Paes informou que Império, Ponte e Bangu receberão R$ 400 mil, cada uma, para reparar prejuízos e, espera-se, indenizar as vítimas. Há promessa de acelerar a construção da Cidade do Samba 2, na área da antiga Estação Leopoldina, na Zona Portuária. Paes também se comprometeu a levar adiante a proposta de exigir cumprimento de direitos trabalhistas, saúde e segurança laboral como contrapartida à liberação de recursos para as escolas, a partir de 2026.

Neste ano, o governador anunciou apoio de R$ 30 milhões ao Grupo Especial e, agora, de R$ 13 milhões à Série Ouro. A Prefeitura do Rio estabeleceu R$ 2,15 milhões por escola do Grupo Especial e cerca de R$ 900 mil para a Série Ouro. O apoio financeiro do setor público é tão bem-vindo quanto justificado. Deveria chegar mais cedo, não às vésperas da festa, de modo que o planejamento adequado desobrigue a correria de última hora. O carnaval rende muito mais para o estado e o município em imagem, atividade econômica, arrecadação tributária, trabalho e renda, sem falar na riqueza cultural, nos laços comunitários, na sociabilidade. Por isso, é inaceitável que a gente que põe de pé o carnaval seja paga com caraminguás, jornada excessiva, condições degradantes e risco de morte. Difícil festejar.

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