Trabalho doméstico: tempo de mudanças necessárias

Texto de Cecília Santos.

Com a promulgação da PEC das Domésticas, nunca se falou tanto do trabalho doméstico como agora. Mas a maioria das discussões se concentra numa posição a favor ou contra as novas medidas, quando deveria ir muito além da questão de sua terceirização via empregada doméstica, uma função que tende a diminuir cada vez mais e se tornar disponível apenas a pessoas de poder aquisitivo superior, como acontece na maioria dos países desenvolvidos. Estamos criando uma geração que provavelmente não contará com empregadas domésticas quando for adulta e que precisa crescer já acostumada a essa nova realidade, sabendo cuidar de si, com autonomia e mais senso de justiça social.

Este texto foi elaborado do ponto de vista da realidade da classe média que vive nas grandes cidades. Sabemos que, de uma perspectiva financeira, as mudanças na lei farão muito pouca diferença para a elite socioeconômica, que continuará a ter empregados domésticos. Também sabemos que, mesmo com seus direitos garantidos (e cumpridos, pelo menos em tese), as mulheres empregadas no serviço doméstico continuarão a enfrentar uma série de dificuldades relacionadas à falta de infraestrutura, como transporte decente, creches e escolas de qualidade e em tempo integral, lazer e segurança.

Mas, apesar dos muitos privilégios da classe média, algumas situações continuam a oprimir mulheres de qualquer classe social ou atividade, como a sobrecarga de responsabilidades dentro do lar e no cuidado com os filhos, idosos e doentes, muitas vezes de forma desproporcional àquela assumida pelos outros membros da família, companheiro e filhos, somada a longas jornadas de trabalho.

 

Sabemos que, quando a mulher de classe média entrou para valer no mundo do trabalho, as responsabilidades com a casa e os filhos passaram de seus ombros para os de outras mulheres: empregadas e babás, avós, vizinhas, etc. Agora, no momento em que muitas famílias deverão adaptar sua rotina à nova e mais justa realidade da jornada de trabalho de 8 horas da empregada doméstica, ao contrário do que tem sido até agora (em que a empregada se adaptava aos horários dos patrões), é necessário que esse peso seja distribuído entre todos os membros da unidade familiar e idealmente com a comunidade.

Conversei com várias pessoas, dentro e fora do feminismo, para entender como elas têm se organizado com a casa e os filhos, e que soluções veem para o problema. As respostas mostram que muita gente já vinha se adaptando e tem ideias interessantes para uma sociedade mais justa e com mais qualidade de vida. O texto abaixo conta com trechos de diversos relatos informais que ilustram esse movimento.

Adaptações na vida profissional

Paulo, editor, sempre adaptou seus horários para acompanhar a rotina escolar da filha e agora trabalha em sistema de home office, enquanto Claudia, sua mulher, trabalha numa ONG e dedica tempo à menina à noite. Apesar de contarem com uma empregada que trabalha das 7 às 15 horas, ainda sobram muitas tarefas domésticas que ambos dividem de maneira bastante igualitária. O interessante é que, em alguns finais de semana, um deles leva a filha a um programa de lazer enquanto o outro descansa ou dedica tempo a si mesmo.

Outra Claudia, esta uma advogada paulistana, partiu para um negócio próprio depois do nascimento do filho caçula, para ter mais flexibilidade e autonomia. Ela compensa as manhãs livres ficando no escritório até as 20 horas, e à noite são os filhos mais velhos, de 17 e 20 anos, que organizam o jantar, tomam conta do irmão de 9 anos e acompanham suas tarefas escolares.

As adaptações cobram um preço das pessoas, inclusive profissionalmente, mas em geral vale a pena e não são para sempre. Alessandra e o marido, de Florianópolis, ambos trabalhando em home office, reconhecem que, apesar do prazer de acompanhar de perto o desenvolvimento da criança, é preciso aprender “a viver com menos grana, rever necessidades e estabelecer prioridades”.

Claro que nem todo mundo pode trabalhar em home office. Rita e Ulisses, por exemplo, trabalham fora e fizeram adaptações nos horários de trabalho. Ela passou a pular da cama mais cedo e ele passou a almoçar um pouco mais tarde, em cinco minutos corridos, mas as crianças, de 5 e 7 anos, sempre têm um deles por perto no período em que estão em casa.

Se todo mundo ajudar, fica mais fácil.

Renata e Gabriel vivem juntos em São Paulo. Ela trabalha em home office e para a cada 2 horas para amamentar a filha de 10 meses, que no restante do tempo fica com a babá. No começo da manhã e à noite, Gabriel é quem cuida da filha.

A criança pequena demanda uma energia imensa, e não é justo que a mãe se desgaste cuidando sozinha. E quando as crianças começam a entender que os pais mantém uma relação equilibrada em termos de divisão, da qual elas também podem e devem fazer parte, todos saem ganhando, em respeito, autonomia e responsabilidade.

Uma mãe que prefere não se identificar conta que o filho de 4 anos a “ajuda a colocar a mesa, leva a roupa pro cesto, junta todos os brinquedos depois de brincar, passa pano pra tirar a poeira, dobra as roupinhas que tiramos do varal…” Ela é solteira e está morando longe da família. Entre contar com uma empregada ou babá e pagar uma boa escola para o filho, escolheu a segunda opção. E quando tem alguma emergência no trabalho, é o namorado ou um amigo próximo quem vai buscar o filho na escola.

Em alguns países europeus, o governo oferece auxílio financeiro para custear ajuda profissional às pessoas que têm necessidades mais complexas, como mães solteiras, idosos e pessoas com deficiência. Aqui ainda estamos vivendo a era do preconceito contra as mães solteiras, e certamente haveria muita gritaria contra qualquer medida nesse sentido, afinal muita gente ainda acredita que evitar uma gravidez não planejada é só uma questão de escolha – e, claro, que filho é problema só da mãe. E não é. As crianças devem ser responsabilidade de toda a sociedade.

menina arruma

Repensando as práticas e padrões que herdamos de nossas avós

Aqui em casa praticamente não se passa mais roupa, exceto as sociais, o que resultou em umas 2 horas a menos de trabalho por semana. Troquei a vassoura por um aspirador vertical, e ficou mais fácil manter a casa nos dias até a próxima faxina.

Nós nos achamos mais “limpinhos” do que outros povos, mas a verdade é que temos uma mania de limpeza infernal. Claro, desde que os outros façam por nós. Combinei com a faxineira que certas tarefas serão feitas com menos frequência e em sistema de rodízio. Com isso, conseguimos reduzir em uma hora a sua jornada, que passou de 8 para 7 horas.

Andrea, mãe de dois adolescentes, um dos quais na faculdade, diz que cada um se adaptou para cuidar das próprias coisas no horário que for possível.

Novas formas de organização coletiva

Além da organização doméstica, é possível também pensar em alternativas coletivas. Renata propõe a criação de “espaços de trabalho compartilhados, onde mães e pais pudessem trabalhar e ter os filhos próximos”, onde as pessoas se alternassem cuidando das crianças em turnos. Os espaços de trabalho compartilhados têm se multiplicado na cidade, especialmente entre os jovens que trabalham com tecnologia. Talvez, quando essa moçada começar a ter filhos, esse será um caminho natural. Não deixa de ser uma revolução desse modo de vida individualista com que nos acostumamos.

O estado pode e deve oferecer infraestrutura

As creches públicas são escassas e em algumas cidades não oferecem qualidade. Os berçários particulares são muito caros e às vezes deixam ainda mais a desejar do que os equipamentos públicos. Ainda assim, até a idade pré-escolar, esses serviços são uma opção. Mas quando a criança entra no fundamental, e até que tenha idade suficiente para ficar sozinha sem correr riscos, as opções são muito restritas, já que escolas em período integral praticamente inexistem ou são caríssimas.

Precisamos pensar em termos muito mais amplos e entender que as questões que envolvem a nossa relação com o trabalho doméstico passam por causas ambientais, sociais e políticas que, num primeiro olhar, não estão diretamente associadas, mas que corroem nossa qualidade de vida. A advogada Claudia aponta o seguinte:

“Se tivéssemos escolas e serviços públicos de saúde (de qualidade), hoje itens que garfam um pedação do orçamento, poderíamos trabalhar menos e ter mais tempo com os filhos, acompanhá-los mais e melhor do que fazemos hoje. Cidades mais seguras, humanas, acessíveis e inclusivas são imprescindíveis para definir uma nova condição para as famílias e, claro, para as mulheres. Acabamos tutelando os nossos filhos muito mais do que fomos tutelados, pelo menos no meu caso é assim, por situações que fogem ao nosso controle, como os trajetos enormes entre casas, escolas e locais de trabalho e também pelo medo da violência.”

A PEC das Domésticas foi essencial para corrigir uma injustiça histórica e não podemos continuar a acreditar que nossos problemas serão resolvidos apenas via terceirização. Claro que sempre haverá quem precise recorrer a uma empregada doméstica ou babá, desde que tenha condições de cumprir a lei. Mas é preciso ter em mente que, dentro dessa lógica capitalista, também ficamos obrigados a trabalhar mais para o mercado. Não seria mais sensato dedicar parte do nosso tempo produtivo a nós mesmos, nossos filhos?

Cecília Santos é tradutora e mãe do Lucas, de 18 anos. Blogueira de comida e aprendiz de fotógrafa, escreve na Cozinha da Ceci e acredita que alimentar é um ato de amor.

O FemMaterna é um grupo de discussão sobre maternidade com uma proposta feminista. Se quiser participar, basta pedir solicitação na página do grupo. Participe também no facebook.

 

Fonte: Blogueiras Feministas 

 

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