“Achei que tinha que viver isso por ser pobre”. A frase é de um homem de 51 anos, Marinaldo Soares Santos, natural do estado do Maranhão. Sua experiência é a seguinte: foi resgatado três vezes da escravidão, em 2007, 2009 e 2010, na sua terra natal. Em todas as ocasiões, declarou ter sofrido agressões dos seus empregadores.
Algo semelhante ocorreu a Maurício de Jesus Luz, de 44 anos, também do Maranhão. Ele viveu em regime de escravidão desde a infância, e atravessou a adolescência até a vida adulta sem garantias trabalhistas, salários e com agressões físicas diárias.
Marinaldo e Maurício, além de serem do mesmo estado, se parecem até no nome. São partes de um esquema de servidão escabrosa que assola o Brasil desde o período colonial, época em que escravizados eram a principal força de trabalho das instituições brasileiras, públicas ou privadas.
É preciso dar freio a este esquema no Brasil, ainda mais quando se verifica que nada faz paralisar a “empresa da escravidão”, presa a laços corruptos, em esquema judiciário e político.
O último domingo (28) foi marcado pelo Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data é simbólica para lembrarmos o quanto esse país ainda é sórdido e escravista, fundado no latifúndio e na exploração de mão-de-obra barata.
Em 2023, o Ministério Público do Trabalho (MPT), computou dados de 3.190 pessoas resgatadas em “condições de trabalho análogas à escravidão”.
A leniência da Justiça beneficia os herdeiros dos senhores de engenho, barões do café e da cana-de-açúcar —que têm herança de sangue escravista. Os escravistas punidos moderadamente, com pagamentos de fianças irrisórias, sem prisão, voltam a cometer o mesmo de crime.
Para as vítimas, fica a ideia de impotência e desesperança, como é o caso de Marinaldo e Maurício.
Percebemos que o passado escravista, com pelourinhos e correntes, não modificou no mundo contemporâneo. Pelo relato dos que sofrem, a escravidão não teve fim em 1888. Pelo contrário, ela aparece camuflada na estrutura do Estado brasileiro, incrustada nas instituições, bem como no modo de agir das pessoas ditas “do bem”.
Lembra Maurício, hoje empregado como garçom no Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, quando escravizado, era tratado com golpes de chicote, chibata, cordas, chutes e beliscões, e chamado de “filhote de urubu” e “neguinho escravo” —citações enquadradas como crime de racismo, que é inafiançável.
Fatos como esses fazem recordar a indignação do jurista e procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT-RJ), Wilson Prudente, morto em 2017, e autor do livro “A Verdadeira História do Direito Constitucional no Brasil” (Inpetus, 2009).
Prudente, que faz muita falta, produzia relatórios que fizeram história no Ministério Público, pela sua contundência. Tais documentos, segundo Prudente, “desmitologizam a escravidão na linha do tempo, que sempre esteve envolta por uma cortina de fumaça”.
Membro da Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, do Conselho Federal da OAB, cujo relatório parcial é de sua autoria, Prudente estaria hoje vociferando contra o aumento do trabalho escravizado no país.
Evidente que este aumento está longe de espelhar a real dimensão do problema brasileiro, como aponta o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), comandado pelo ministro Silvio Almeida.
Pelo Código Penal, no seu artigo 149, “trabalho escravo” se caracteriza pela “submissão de alguém a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, sujeitando-o a condições degradantes, restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto”.
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), concluiu uma “lista suja” com cerca de 500 “empresários da escravidão”. A lista, com nomes de pessoas e empresas importantes, precisa receber o rigor da lei, com cadeia para os criminosos.
Em contrapartida, desde 2013, o número de vítimas e ocorrências só cresce, como demonstram boletins disponibilizados pelo Governo Federal. É preciso redobrar a vigilância, ações e punições, sem artifício para a impunidade.
Nunca menospreze os foras da lei, mesmo milionários, que visam o benefício que o dinheiro traz, interligados a redes de proteção e privilégios. Com isso, fortalecidos pelo lucro a qualquer preço, mantém vidas em condições desumanas no campo e na cidade.
Por tal fato, menos por outros, vivemos períodos tão sombrios e violentos, no Brasil e no mundo.