Trabalho sobre ações afirmativas leva estudantes da UERJ a Harvard

FONTEPor Jefferson Barbosa, da Folha de S.Paulo
Sharah Luciano, 23, de rosa, e Daiane de Medeiros, 28, que apresentarão estudo em Harvard - Ricardo Borges/Folhapress

Três alunos da faculdade de pedagogia do campus Baixada da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) terminarão o ano letivo em terras americanas. Eles tiveram um estudo selecionado para a 1ª Conferência do Centro de Estudos Afrolatinoamericanos (Alari, na sigla em inglês) de Harvard. O trabalho de Sharah Luciano, 23, Daiane de Medeiros, 28, e Anderson Alves, 24, aborda a contribuição das ações afirmativas para a academia.

O evento do Alari ocorre entre 11 e 13 de dezembro e busca promover o campo de estudos fomentando um diálogo entre atores envolvidos na implementação de justiça acadêmica e racial na América Latina.

Formados em pedagogia pela UERJ, os três são moradores da Baixada Fluminense e da zona oeste do Rio. A trajetória das duas jovens, que conversaram com a Folha no pátio do que antes fora um brizolão (como ficaram conhecidos os Cieps, Centros Integrados de Educação Pública, criados no governo de Leonel Brizola), não se restringe à sala de aula. Agora mestrandas, elas querem ser educadoras.

“Já fui voluntária em coletivos e para mim essa experiência no pré-vestibular comunitário +Nós e no coletivo Filhas de Dandara dá mais liberdade de trabalhar a história afrobrasileira de forma menos engessada na prática. As crianças se envolvem mais quando têm mais liberdade”, conta Shara, primeira colocada na seleção do mestrado neste ano, mesmo desempenho que teve quando prestou vestibular.

Desde os 15 anos, Daiane sonha com a possibilidade de mudar a escola. Ela é a primeira da família a ter o diploma de ensino superior e conta que isso não teria sido possível sem bolsas de apoio. “Quando entrei na pedagogia eu tive várias bolsas, como a da Capes, o que me permite fazer pesquisas como a que será apresentada em Harvard”. Ela pretende, paralelamente ao trabalho com educação popular, ser professora universitária.

Para além do trabalho coletivo, ela desenvolve uma pesquisa mais aprofundada no mestrado: “todas as referências que constituem o povo negro estão voltadas para uma ótica dos próprios ancestrais ou de subserviência do processo de dominação e colonização. Se faz necessário pesquisar para evidenciar a história e a memória africana em seu protagonismo”.

A partir da identificação de elementos dessa ancestralidade, ela pretende falar sobre educação partindo de uma percepção afrobrasileira, tendo a justiça social como principal ponto da pesquisa. Ela e Sharah se conheceram em uma atividade do coletivo de alunas negras chamado Dandaras.

Sharah pesquisa a formação de grupos das mães dos jovens assassinados na Baixada Fluminense: “essas mulheres, em sua maioria negras, são responsáveis por denunciar a violência sofrida por seus familiares, se organizam em atos e idas a órgãos governamentais, denunciando e cobrando providências do Estado”.

Daiane investiga a pedagogia da ancestralidade, entendendo como os conhecimentos ancestrais atuam no processo de ensino e aprendizagem. “A gente sabe que vive em um país racista. Tive uma experiência recentemente, quando usei imagens de orixás na sala em uma escola que fui dar aula e os próprios professores rasgaram essas imagens”. Daiane complementa: “um modo pedagógico antirracista é trazer o candomblé, o homem negro, uma origem nossa, nossas crianças pretas”.

Já Anderson Alves começou a trabalhar aos 16 anos como atendente do McDonald’s por querer ter uma independência financeira e ajudar na renda da casa. Hoje ele é voluntário em escolas em Buenos Aires, ensinando português. Por telefone, ele também compartilha do sentimento de revolucionar o ensino escolar. “Também fui o primeiro da família a entrar na universidade, a maioria dos meus amigos foram assassinados, e entrar para uma universidade determinou todo o meu trajeto.”

“São duas pesquisas muito distintas, que revelam a multiplicidade dos enfoques criados pelos jovens negros na universidade”. A afirmação é da professora deles, Janaina Damaceno. “O reconhecimento intelectual é restrito a um grupo de pesquisadores. Ter jovens periféricas e criadas na Baixada Fluminense fazendo parte desse grupo significa muito.”

Para ela, a licenciatura também é um meio de profissionalização intelectual que rompe com a trajetória do trabalho braçal exercido pela maioria da árvore genealógica dos mais pobres. A professora negra é um espelho para as meninas: ela faz parte dos apenas 3% de professoras negras na pós-graduação brasileira.

Segundo Márcia Lima, do comitê de organização do evento, muitos pesquisadores brasileiros estão indo para Harvard por conta de apoios e de interesse do Alari nas pesquisas relacionadas à questão racial, Márcia também é pesquisadora de políticas afirmativas do Departamento de Sociologia da USP.

O trabalho em conjunto tem analisado os desdobramentos da implementação do sistema de cotas na UERJ, provocando a reflexão sobre a influência das ações afirmativas de acesso ao ensino superior no surgimento de novas produções acadêmicas, que rompem com o paradigma de referenciação eurocêntrica.

Na opinião de Sueli Carneiro, 69, filósofa e militante do movimento negro, principal referência das pesquisadoras, o trabalho delas ser selecionado é sinal de que tanto a política de ação afirmativa quanto o trabalho delas tem funcionado: “as cotas para negros nas universidades são a política pública mais exitosa que conquistamos nos últimos anos. Evidência disso são esses jovens que transformaram as universidades brasileiras, têm o poder de transformar vidas à medida que jovens como esses, que tinham esse universo proibido, conseguem acessá-lo”.

A incerteza da continuidade das bolsas preocupa muito as estudantes. Para se manterem com o apoio de R$ 1.500 da Capes, elas precisaram ser aprovadas em primeiro lugar e manter notas altas. “Para se ter um bom desempenho, é necessária muita dedicação”, reforça Sharah. “Neste ano a cobrança está maior, porque não temos novas bolsas, eram 11 em 2018 e agora são 4”, desabafa Daiane.

Ao falar da família, elas se emocionam. A mãe de Sharah, Janete, 59, terminou o ensino médio no EJA (Educação de Jovens e Adultos). “Mas educação sempre foi algo visto como positivo, que minha mãe incentivava”. O pai de Daiane estudou até a 4ª série e a mãe também terminou a formação pelo EJA.

Para custear a viagem, eles fizeram uma vaquinha online. Após a divulgação da viagem de Sharah, ela ganhou uma bolsa de estudos para aprimorar o inglês. Para elas, o que fazem é uma continuidade do trabalho de outras que vieram antes.

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