O estudante de administração Nathan Meireles, de 24 anos, gosta de usar boné e roupas confortáveis. Um colar de metal dá um ar descolado ao rapaz, que cultiva barba e bigode bem aparados. Com 1,54m, ele modela e planeja ser empreendedor. Nathan tem a cara de sua geração e está em paz com sua imagem. Mas não com o reflexo da sua condição de homem trans numa sociedade que acha feio o que não é espelho.
— A partir do momento que eu me entendi trans, quis me adequar a uma estética mais masculina. Mas sempre soube que não seria um homem com características cis, e nem queria isso. Hoje olho e gosto. Não me incomodo com a altura, mas o meu tamanho e voz ainda causam constrangimentos que me impedem de arrumar até mesmo um emprego — relata o jovem, terceiro colocado no Concurso Mister Brasil Trans 2022, realizado este mês em São Paulo, voltado para a afirmação de belezas negadas pela cisnormatividade.
Natural do Espírito Santo, Nathan, que se descobriu trans em 2013, superou inúmeros desafios, mas hoje está desempregado. Foi rejeitado numa entrevista para estoquista de loja por não cumprir “exigências físicas” para a vaga. A baixa estatura pesou, assim como a voz ainda fina, apesar da terapia hormonal com testosterona, iniciada quando tinha 18 anos.
Na lógica da cisnormatividade, sistema que coloca as características relacionadas ao sexo biológico como privilegiadas e pretere as singularidades de pessoas trans, são inúmeros os conflitos enfrentados por homens e mulheres que iniciam a hormonização e a troca de nome. Nesse processo, eles precisam resistir e reafirmar suas belezas de indivíduos que fogem do considerado padrão estético.
Angústia e sofrimento
A história de Nathan é a de milhares de brasileiros. Uma pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp) estimou, no ano passado, que o Brasil já tem pelo menos 3 milhões de transgêneros. Entre os respondentes, 85% dos homens trans afirmaram já terem sentido sofrimento ou angústia em relação ao próprio corpo. Entre as mulheres trans, esse sentimento foi apontado por 50% das entrevistadas.
Os transgêneros ainda lutam por representatividade social, especialmente no mercado de trabalho. Um estudo deste ano do Transvida, centro de convivência e promoção da empregabilidade LGBTQIAP+, mostrou que no Rio de Janeiro, por exemplo, pessoas trans vivem à margem: cerca de 44,2% dos entrevistados estavam desempregados e apenas 15% deles tinham carteira assinada.
O especialista em gênero e sexualidade Leonardo Peçanha diz que a transexualidade bate de frente com a lógica cis ao ampliar as possibilidades de ser homem ou mulher no mundo, para além da genitália. De acordo com ele, as exigências cisnormativas de que pessoas trans devem usar hormônios, fazer cirurgias e modificar o nome, para só a partir disso serem respeitadas e vistas como homem ou mulher, são extremamente violentas e podem produzir sofrimento psicológico.
— A sociedade precisa entender que, quando uma pessoa trans faz uma cirurgia, ela está buscando se adequar à identidade delas. Existem diferentes tipos de beleza, e isso precisa ser respeitado para que as pessoas trans tenham uma boa autoestima e oportunidades de existência — ressalta Peçanha.
Passabilidade
Assim como Nathan, a atendente de telemarketing Eloá Rodrigues, de 29 anos, viveu inúmeras transfobias por sua estética. Travesti negra, magra e com cabelos longos, ela conta que lutou por mais de seis anos para conseguir espaço nas passarelas. Ainda assim, a participação no Miss Trans Brasil e no Miss International Queen, o “Miss Universo trans”, em junho, na Tailândia, só foi possível porque hoje Eloá considera que tem passabilidade — termo usado pela comunidade para se referir à pessoas trans lidas socialmente como cis, devido às características físicas muito semelhantes.
— A moda reforça muitos estereótipos. Quando comecei, fui rechaçada por não ter um padrão de beleza esperado para miss. E existe um ideal cis até mesmo dentro do mundo trans, porque tememos o preconceito. Hoje, quando chega uma oportunidade, é sempre em meses de conscientização LGBT. Me questiono quando as marcas e empresas vão nos convidar para atuar num contexto comum — afirma a carioca, que desde criança faz aulas de teatro.
Para a professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro Jaqueline Gomes de Jesus, a passabilidade é um conceito carregado de preconceitos, pois torna “mais aceitável” pessoas que se encaixam no padrão. A cobrança por uma leitura social feminina é mais intensa porque perpassa o machismo, que dita como mulheres devem ser e se comportar, diz. No caso de Eloá, por ser negra, ainda há o racismo estrutural, que nega a beleza afro, mesmo quando 56% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos, segundo o IBGE.
— Para mulheres em geral, a beleza é um grande desafio. Para homens, a leitura social masculina é menos exigente, o que faz com que esse processo seja mais acessível aos trans. Mas, em ambos os casos, há uma ditadura do embelezamento, que é o do corpo branco, cisnormativo e magro — aponta Jaqueline.
Para naturalizar a representação de homens trans na moda, foi realizada neste mês a segunda edição do Concurso Mister Brasil Trans 2022. Primeiro concurso exclusivamente para trans masculinos do mundo, o evento busca quebrar paradigmas da indústria da moda ao contemplar candidatos gordos, magros, de diferentes etnias, e que podem ou não ter passado pela cirurgia de retirada das mamas.
Um dos concorrentes, que posou sem camisa e usando binder (faixa que aperta os seios), o autônomo João Daniel Dionísio, de 25 anos, usou sua imagem para mostrar que peitos ressaltados não são intrusos. Dionísio não quer passar por cirurgias porque pretende gerar e amamentar filhos biológicos, num futuro não tão distante.
— Eu nunca criei muitas expectativas para não me frustrar, mas sempre quis ter cavanhaque para me sentir bem. Hoje, com barba ou sem, eu sei quem sou. Não vejo meus seios como intrusos e não quero correr riscos em cirurgias se estou bem comigo mesmo. Não sofro preconceito porque os hormônios reduzem a quantidade de gordura e faço exercício físico. Mas quando percebem, as pessoas não me validam como homem — conta.
Dono de um ateliê de costura, Daniel vive um dilema de ser um homem com um emprego considerado socialmente feminino. No entanto, ele conta que hoje o estigma é menor, porque confecciona roupas voltadas ao público LGBTQIAP+:
— Já passei semanas fazendo teste de emprego para no final dizerem que eu não sou o perfil certo. Fiz trabalhos como modelo, mas nunca consegui me consolidar na área. Então resolvi criar o meu próprio negócio. Hoje, considero que tenho sucesso no que faço, apesar de ainda receber olhares, por ser costureiro, mas principalmente por ser negro.