“Eu vim aqui para você devolver a minha negritude”. O pedido grandioso é feito pela moça sentada no pequeno salão de beleza de Alê Estrela. “Gata, é difícil. Nem sei onde está a minha”, responde a cabeleireira. Ela nega que funcione um pouco como psicóloga, mas a cadeira volta e meia faz o papel de divã. E se não pode devolver a negritude, ela cuida de um dos pontos mais polêmicos da autoestima negra: o cabelo crespo, que ainda guarda o estigma de “ruim”.
Por Luana Ribeiro no A Tarde
“Meu cabelo é crespo. O processo que entra na minha história, e quem sou como etnia, me dá esse fio. Mas isso não significa que, para meu cabelo ser bonito, precise fazer química. A cada dia, ele me propõe coisas diferentes e posso tratar com um bom xampu, uma boa máscara”, diz. Turbantes e lenços, segundo ela, resolvem com graça qualquer bad hair day.
No espaço exíguo do salão, Alê conta que já se emocionou com as lágrimas de quem resgatou as raízes, tendência que vem crescendo no país. De acordo com a Mintel, companhia britânica de pesquisa de mercado, houve uma queda de 26% na venda de alisantes e relaxantes entre 2008 e 2013, uma redução de US$ 206 milhões para cerca de US$ 150 milhões.
O estudo sinaliza a mudança de atitude das mulheres negras em relação aos cabelos: 48% afirmaram que os naturalmente crespos passam confiança e ousadia. Em 2013, 70% das entrevistadas afirmaram ter abandonado os permanentes e relaxantes. Para a analista multicultural da empresa, Tonya Roberts, o retorno ao natural incrementa a venda de produtos como xampus, hidratantes, finalizadores, cremes, pomadas e ativadores de cachos.
Na transição capilar – processo de retirada dos fios transformados pela química – há um contraste entre a parte alisada e o natural, que se impõe próximo ao couro cabeludo. Se a diferença é muito grande, uma opção é o “big chop”, ou “grande corte”: o BC corta de uma só vez qualquer amarra com a “química”.
O momento do BC é de entrega: a cliente não tem a resposta do espelho, enquanto Alê manuseia a tesoura, após pedir a bênção de seus orixás. “É muito lindo. De chorar”. Naquele dia, a cliente que queria a negritude de volta saiu do salão sem ter o desejo realizado. Como já fez com outras mulheres, Alê pediu que pensasse se estava preparada para a mudança. “Muitas estão nessa por modismo”, diz. Desconstruindo para construir, pergunta: “E quando você estiver sozinha com o espelho? É de lá de dentro que vem essa vontade?”.
Dessas mudanças todas, Adriana Quintiliano, 25, entende. Já foi loira, usou megahair, tranças e black power. Com corte curto e quadrado, foi aclamada como a “Grace Jones da Bahia” no Carnaval. Hoje, aderiu à máquina zero, que deixa ver a tatuagem que reproduz a capa de Geraes, disco de 1976 de Milton Nascimento.
Assim como o cantor mineiro, conhece a realidade dos orfanatos, onde viveu até os 18. “As funcionárias tinham a mania de passar prancha, aquele ferrinho que bota no fogo”, conta a moça esguia, com cabeça nua, argolas, piercing, olhos vivos e estilo bacanudo, de estampas e adereços.
“Na Lapa? É um tédio”, diz. “As pessoas olham como se você fosse um bicho”. Descolorida, já foi alvo de piadas e gargalhadas. Para alegria geral do resto da nação, nem liga. “Depois do que sofri, vejo que tenho que me valorizar”. No Facebook, a linha do tempo mostra a transformação da camaleoa. No ambiente virtual, faz barulho a troca de informações sobre beleza, autoestima e negritude.
Ao ver esse burburinho, a estudante de ciências sociais Gabriela Bacelar, 21, criou no Facebook a comunidade “Cacheando em Salvador”, com mais de 8,6 mil participantes. Além das postagens, o grupo promove encontros entre crespas e cacheadas como ela, que, há menos de um ano, ainda alisava o cabelo. “Não me considerava negra”, diz. “Só na adolescência, fui me aceitando e me identificando como negra”.
Nas conversas virtuais são marcantes os relatos de humilhação e a pressão pelo alisamento. “Há mães que pedem ajuda, quase em desespero, para lidar com crianças que querem alisar o cabelo, porque nenhuma princesa dos desenhos se parece com elas”. Para ampliar a rede de apoio, o próximo passo será estimular a criação de grupos presenciais. “Muitas mulheres não têm acesso ao Facebook. Por isso, buscamos ocupar espaços fora da internet”.
Não se reprima
De outra geração, o técnico em edificações Everton Santiago, 43, não teve muito em que se amparar para desenvolver a autoestima. Quando criança, sem ver ninguém parecido com ele na TV, achava que havia algo errado com sua pele. A adolescência, ao som do Menudo, não ajudou. “Meus colegas eram todos brancos”, diz.
Alisando os cabelos, ele tentava se parecer mais com os moços do “não se reprima”, até que a leitura e a música fizeram literalmente a sua cabeça. “Eu li o livro de Malcolm X, e isso mudou meu modo de viver e meu visual. Passei a ouvir Bob Marley e me identifiquei muito”, conta, do alto de seus dreadlocks compridos.
Como “rasta”, decidiu multiplicar o amor por si e convocou a esposa a fazer o mesmo. “Eu fui trabalhando isso com ela, mostrava meninas com cabelo crespo nas ruas, pedia para que parasse de usar alisantes. Um belo dia, ela achou no Facebook um grupo que reúne mulheres de todo o Brasil e de fora também. São depoimentos emocionantes”. A ação na família se estendeu ao filho, cabeça-feita desde menino. “Todo dia converso com ele sobre a questão, e ele, graças a Deus, assimila legal”.
Para Antônio Carlos Vovô, presidente do Ilê Aiyê, a família pode ajudar na autoaceitação. “Se amar e se respeitar passa por várias questões. Há famílias que trabalham isso com tranquilidade, outras têm vergonha, não se veem como negras”. Há 35 anos, o Ilê promove a Noite da Beleza Negra, na qual é eleita a Deusa do Ébano, que representa o bloco no Carnaval e ao longo do ano.
“O Ilê deu o exemplo do uso da trança, do torço, das roupas coloridas, e, hoje, percebe-se que essa estética vem se impondo”. Vovô, no entanto, faz um alerta de que o “negro lindo” não é só o rostinho bonito. “A luta continua, não foi resolvida. Não é apenas visual, é assumir a negritude. Há quem use cabelo trançado e se diga morena. Melhorar de vida não faz deixar de ser negro”.
Trinta e seis anos após passar pela transição capilar – com o apoio de Gilberto Leal, com quem ajudou a erguer o Movimento Negro Unificado na Bahia -, a professora Ana Célia da Silva, doutora em educação pela Ufba, tem acompanhado a busca das mulheres negras pelo próprio rosto. “Acho que as mulheres negras passaram a desacreditar da representação da diferença como o feio, o ruim, o sujo. Começaram a ver a beleza da diferença”, aponta ela, que também credita as mudanças à maior presença na mídia de mulheres consideradas bonitas e com cabelo natural.
Ana Célia atribui a entrada desses “modelos” na TV à atuação do Movimento Negro, “que lutou arduamente”. Reconhece, no entanto, em alguns casos, a “devastação” do que foi construído pela militância ao longo das últimas décadas. “Na semana passada, por exemplo, um programa botou a música Nega do Cabelo Duro, daquele homem – que é negro, mas não se reconhece -, para falar da Baixa do Tubo”.
Espelho da família
Hoje, o estudante de design Jackson Nascimento, 27, considera-se lindo. Ele sempre foi, na verdade, mas não tinha consciência disso. Só conseguiu se enxergar ao ver-se no espelho da família, quando ainda sonhava ter nariz afilado. “O meu pai foi black quando jovem, e minha mãe, uma negra estilizada. Olhando para eles, tive mais segurança”.
Jack, como é conhecido, entende de beleza: fez trabalhos como modelo e chegou ao quinto lugar no Mister Bahia. “Já vi gente chamar negro de lindo, dando como justificativa que os traços eram finos e nem parecia ser negro, odeio escutar isso”. Nos concursos e nos castings, segundo ele, costuma predominar uma regra disfarçada.
“Geralmente, são escolhidos negros com aparência exótica, traços europeus ou asiáticos”. Hoje, ele diz não ter problemas com o nariz ou os cabelos e ama os lábios grossos e a cor da pele. “Acho que nós nunca tivemos tanta noção de cidadania. E isso é o reflexo da segurança que repôs em nós aquilo que nos faltava”, resume. Não há dúvidas: Jack is beautiful.