Três meninos no portão

Todo mundo sabe o que aconteceria se aqueles rapazes abordados pela polícia semana passada estivessem em Costa Barros e não em Ipanema

Em 2022, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) refez a pesquisa “Elemento suspeito”, feita pela primeira vez em 2003, com dados sobre abordagens policiais no Rio. Todo mundo já sabia, mas os números escancaram: 68% das pessoas abordadas andando a pé são negras. Policiais que participaram da pesquisa disseram que reconhecem como suspeitos indivíduos com “bigodinho fininho e loirinho, cabelo com pintinha amarelinha, blusa do Flamengo, boné…”.

Em entrevista à Agência Brasil, na época, a pesquisadora (e maravilhosa!) Silvia Ramos disse: “A polícia acaba não prendendo os criminosos e fazendo desse mecanismo, que é a abordagem policial, o único mecanismo policial. Quando, na verdade, sabemos que o que desarticula as quadrilhas e o crime são as investigações, a inteligência, não é o trabalho de estar todos os dias nas ruas da cidade com aquele olho que olha sempre para o menino negro como se ele fosse suspeito e produz com esse menino negro o tempo todo uma prática traumática.”

A notícia dos três meninos negros, entre eles dois africanos, abordados, emparedados e violentados pela polícia do Rio na semana passada me lembrou o trabalho do CESeC, que tem como subtítulo “Negro trauma: racismo e abordagem policial na cidade do Rio de Janeiro”.

Me lembrou também alguns relatos que ouvi nesses sete anos em Angola. Certa vez, por exemplo, um moço me contou que um grupo da empresa em que ele trabalhava foi fazer um treinamento em São Paulo. Em um domingo, cinco angolanos foram até uma casa de câmbio em um shopping para trocar dólar por real. Os vendedores da loja enrolaram para atendê-los e, quando eles perceberam, havia um policial na loja porque os atendentes haviam chamado a polícia, sem qualquer justificativa. Quando contaram o ocorrido à escola brasileira responsável por eles, a solução encontrada foi dar aos cinco homens negros uma declaração. O papel com contatos, assinatura e carimbo da escola descrevia o que eles estavam fazendo no Brasil e se responsabilizava pelos angolanos. Eles então andaram com aquele “passaporte” no bolso até o fim da viagem.

Eu poderia discorrer páginas e páginas sobre isso e relacionar pontos e mais pontos de convergência. Mas o que mais me irrita nisso tudo são as desculpas. Sabe quando alguém pisa no seu pé e a sua vontade é pisar de volta? Mas aí a pessoa pede desculpas, diz que foi sem intenção e você precisa então aceitar e até sorrir. Isso é o que eu sinto que estamos fazendo há séculos, aceitando desculpas vazias de mudança. Faz séculos que ser negro é um caso de polícia.

Todo mundo sabe o que aconteceria se aqueles meninos estivessem no portão de um prédio em Costa Barros e não em Ipanema. Inclusive, eu não me lembro das famílias dos cinco jovens assassinados com 111 tiros terem recebido algum pedido de desculpas do Estado ou do raio que o parta.

O problema é que se eu sei, você sabe, o CESeC já produziu mais de 60 páginas, a Anistia Internacional outras tantas, o Caetano já cantou, já fizemos passeata, filme, livro, então o que falta para o fim da política de segurança pública que temos no Brasil?

Sinceramente, hoje não é um bom dia para pisarem no meu pé.

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