Trote: “Cheguei em casa me sentindo um lixo”

Uma ex-aluna da Universidade Federal de São Carlos relata sua experiência como caloura durante seu primeiro ano de faculdade.

por MONIQUE AMARAL

Quando eu entrei na faculdade já achava boa parte do que rola nos trotes e festas universitárias algo muito problemático. Eu estava ansiosa para começar a participar dos espaços da universidade e conhecer pessoas novas, que se interessassem por coisas parecidas comigo. Para ter um primeiro contato com as pessoas que estudariam comigo e com meus veteranos, compareci no horário e local marcado para o trote. Meu curso é predominantemente feminino e nosso trote, comparado ao da maioria dos outros cursos, foi leve. Mesmo assim, enquanto andávamos até o farol onde faríamos o pedágio para arrecadar dinheiro para a cervejada organizada pelas veteranas, algumas delas pediam para que enviássemos sinal de beijinhos para os meninos que passavam por nós ao longo do caminho. Diziam “Manda beijinho pro veterano, bixete”. Para mim ali já despontava a demonstração de uma noção de espécie de servidão das bixetes aos veteranos.

Aquilo tudo me irritava muito, mas eu fazia algum esforço para fingir ignorar algumas coisas e ser simpática. Ao longo do pedágio, eu e outras calouras ouvimos diversas coisas desagradáveis de alguns motoristas, geralmente o assédio verbal era ou relacionado a nossa aparência, a nossa sexualidade ou ambos. “Que gostosinha”, “Você está de parabéns” eram algumas das coisas ditas pelos motoristas e aprovadas pelas nossas veteranas com frases do tipo “Oh, a bixete tá fazendo sucesso!”. Eu estava me sentindo desconfortável e tinha entendimento de que ser assediada estava longe de ser “fazer sucesso”.

Ao fim do pedágio, enquanto caminhava sozinha com o rosto e os braços pintados de tinta até o local onde estava morando para me limpar, um carro cheio de universitários homens para o carro; eles começam a gritar olhando em minha direção “Morre demônio!”, “Passa reto!” e riam alto, em tom de escárnio. Eu queria xingá-los, responder ao que estavam fazendo, mas tive medo de piorar a situação. Eu já não estava me sentindo bem depois do trote, e aquilo terminou de me destruir. Cheguei em casa me sentindo um lixo. Enquanto tomava banho e tirava a tinta de mim, tentava me sentir bem e pensar sobre tudo o que tinha acontecido. O problema não era a tinta, mas o que ela significava naquele momento. Afinal de contas, estar marcada como “bixete” com a tinta significava passe livre para ser humilhada e assediada?

Semanas depois, em uma festa de integração para os calouros realizada pelo meu curso e mais um predominantemente feminino em uma república de estudantes homens de outro curso, ao chegar e ver como os meninos presentes se comportavam com relação a todas as calouras, ficava claro que o empréstimo daquele espaço para uma festa com cursos praticamente compostos só por mulheres não era por acaso.

A cada movimentação que fazíamos na casa éramos abordadas por algum menino. Pouco mais de uma hora depois, reconheci no meio da festa um dos meninos que estava no carro que havia me coagido na semana do pedágio. Aparentemente ele não me reconheceu, talvez por agora eu estar sem tinta no rosto ou talvez por ele sequer ter olhado para mim enquanto me ofendia.

Após o batizado dos calouros, momento em que fomos levados um por um para cima de uma mesa para sermos batizados por um apelido escolhido pelos veteranos ali presentes –  no caso dos poucos meninos calouros, apelidos que questionavam sua masculinidade, e no nosso caso, quase sempre relacionados a nossa aparência – fui à procura de um banheiro para secar os cabelos molhados pelo balde de água jogado sobre nós no momento do batizado. No caminho, sinto uma mão segurando meu braço e olho para trás, era o mesmo menino de semanas atrás me dizendo agora “Vem aqui, gatinha!”. Eu me soltei e andei enfurecida até o banheiro. Na porta do banheiro, fui prensada na parede por outro menino que tentava me beijar. Xinguei ele e o empurrei com força.

A cerveja do open bar tinha acabado por alguns momentos, mas o open bar principal éramos nós.

 

Monique Amaral é ex-aluna da Universidade Federal de São Carlos.

 

Fonte: El País

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