Trump, evangélicos brasileiros e tecnologia: Um anúncio do fim do mundo como conhecemos?

Eu sou Thayane, mulher negra pernambucana que pesquisa os “crentes” há 12 anos e foi membra de uma igreja evangélica protestante por quase uma década. Sou uma antropóloga negra de 28 anos e acredito, por um lado, que o meu trabalho intelectual é reconhecer que parte de mim se constituiu por uma ética e visão de mundo orientada pela bíblia sagrada. Mas, por outro lado, existe a minha vida entre as culturas – dos lugares que passei, das pessoas e das pesquisas que já realizei – que cruzaram meu caminho, porque me fizeram ampliar e/ou criar os universos que existiam dentro de mim.

Durante o tempo que passei na igreja tive muitos cargos e fui profundamente envolvida com as atividades promovidas. Aprendi também que todos nós temos a liberdade e capacidade de interpretar as escrituras, pois foi assim que surgiu o protestantismo: através da inspiração divina + o exame da bíblia.

Assim, fui inspirada a acreditar firmemente que eu, como alguém que já comungou (e ainda põe fé em alguns) desses valores e crenças, posso também absorver e agregar o mesmo de outras formas de vida, conhecimentos, espiritualidade e visões de mundo. Desde que haja um comprometimento individual e coletivo, espiritual e ético, direcionado à paz entre nós e outros seres existentes no mundo em que vivemos. Afinal, a vida foi dada a todos como um presente porque ela é bonita e deve ser preservada. Mas infelizmente, não é assim para a maioria de nós, pessoas de cor.

Por essa razão, aqui neste espaço pretendo propor reflexões que alcançam narrativas míticas em diferentes culturas para então reinterpretá-las em nosso tempo. Escrevo porque vejo em nós, pessoas negras, a capacidade de imaginar e brincar com um futuro que se mostra em todo tempo brutal – para então construir aquele que desejamos.

Assim como, no passado, surgiram falsos profetas entre o povo, da mesma forma, haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras.

2 Pedro cap 2 v. 1

É notável que, na última década, políticos de extrema direita no mundo inteiro têm sido eleitos por causa de discursos baseados num profundo desamor à humanidade e a diferença cultural – o medo do Outro. Esses homens vão contra as constituições de seus países, usam o palanque como um púlpito e, em seus discursos, pregam sobre ordem em nome de um Deus que promove a guerra. Enquanto isso, milhões de pessoas sofrem em consequência dessas decisões – fundamentadas em interesses econômicos e poder.

Tais líderes podem ser lidos como o que a bíblia chama de Anticristo, e eu de Anti-cristo (com hífen, para significar um afastamento dos ideais que o profeta Jesus Cristo pregou). Eles são, assumidamente, contrários ao amor e à paz; surgiram num cenário de caos no mundo (desastres ambientais, guerras, fome, epidemias) e mudança de mentalidades neste século. Ostentam um discurso falso de serem representantes de Deus, mas agem com o interesse de resguardar os direitos de um só grupo (parte de seus eleitores), não da nação.

Por meio de suas decisões, eles promovem e estimulam a destruição de territórios, a poluição no planeta, alimentam o ódio entre os seres humanos e exploram, principalmente, pessoas pobres, de cor, mulheres (e até crianças) a nível global. Ou seja, vivem como devoradores desfazendo aquilo tudo o que, segundo o cristianismo, foi feito durante os sete dias de criação do mundo: o ser humano (junto com ele o livre arbítrio) e a natureza.

O Espírito diz claramente que nos últimos tempos alguns abandonarão a fé. Eles seguirão espíritos enganadores e ensinos de demônios. 2 Estes ensinos vêm por meio de homens hipócritas e mentirosos, que têm a consciência insensível, como se ela tivesse sido queimada com um ferro em brasa.

1 Timóteo 4. 1-2.

Esse versículo atualmente me faz lembrar de um grupo de homens: Trump (EUA), Milei (Argentina), Bolsonaro (Ex – presidente do Brasil), Bukele (El Salvador) e Netanyahu (Israel), cujos projetos políticos são baseados na aproximação dos cristãos e, principalmente, dos evangélicos em seus países. O objetivo tem sido evidente: utilizar da fé e do desânimo que esse grupo tem com governantes a nível nacional, para construir seus projetos de dominação, aumentando as desigualdades e sofrimento coletivo, em nome de um suposto progresso para todos.

Dando continuidade ao projeto que europeus e americanos vem executando desde a colonização (quando invadiram continentes, roubaram as riquezas e escravizaram as pessoas), esses políticos estão utilizando da tecnologia – redes sociais como o Whatsapp e Facebook; Inteligência Artificial; redes de televisão aberta – para propagar não só Fake News e serem eleitos, mas, na intenção de criar uma nova mentalidade social que une a fé no Deus cristão à política para a construção de uma grande nação (cristã) que irá se unir às outras. Esse amplo projeto tem sido espalhado a partir da apropriação de diferentes culturas pela cultura dominante, para então causar uma confusão simbólica nas nossas mentes, e aos poucos, ir apagando a história dos oprimidos.

Estruturalmente reforçam a ideia de que seus países são nações escolhidas por Deus, para então venderem a imagem a ser idolatrada pelos fieis. Se consideram acima de todas as leis e do respeito a cada ser humano sem respeitar as vozes de outras religiões. Seus discursos são baseados em interpretações equivocadas da bíblia para benefício próprio e exclusão/morte de muitas pessoas, como por exemplo a negação do Coronavírus por Donald Trump e Jair Bolsonaro, cujas decisões colocaram os EUA e Brasil no topo da lista de mortes. Também há pouca ou nenhuma preocupação com a vida, o amor, a justiça, a verdade e a caridade, valores essencialmente judaico-cristãos.

Para ilustrar essa conversa utilizarei informações dos primeiros dias de reeleição do Donald Trump, que só no primeiro dia de mandato foi responsável por ações que podem ser consideradas crime contra a humanidade. Como 1) a expulsão e proibição de entrada imigrantes não documentados, em geral pessoas devastadas pela pobreza em busca de asilo; 2) a retirada dos EUA do Acordo de Paris, em que Trump se opôs a iniciativas para combater as mudanças climáticas, afirmando que não utilizará fontes energéticas renováveis, indo na contramão do cuidado com o planeta; 3) além da eliminação de políticas de diversidade (raça, classe e gênero) para o combate desigualdades.

No mesmo evento da posse, estavam presentes os principais bilionários das empresas de tecnologia, apoiadores do atual presidente dos EUA e celebrados por evangélicos como figuras importantes para a construção de um futuro “longe do pecado”, ou seja, da cultura nacional, num mundo governado por “Deus”, através de seus representantes.
A inserção desses homens na política pode ser percebida, por exemplo, ao observarmos a relação entre evangélicos e as redes sociais. Elas tem sido uma ferramenta de fortalecimento de uma fé que é cada vez mais distante do texto bíblico, fazendo com que parte desse grupo abandone o discurso da Salvação por meio do amor e da misericórdia que vem de Cristo. Assim, se aproximam de ideias racistas e intolerantes que circulam e são impulsionadas por essas mídias.

Espaços virtuais como Facebook, Instagram, Youtube, Twitter, Whatsapp e TikTok tem alimentado o mundo com discursos de ódio contra pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ e outros grupos étnicos e religiosos menores, que correm risco iminente de morte por viverem de modo diferente. É preciso ter em mente que a tecnologia moderna, presente principalmente em celulares e televisores, oferece entretenimento, interação global e influência nas decisões das pessoas, independentemente da classe social.

Acredito que isso é fruto das inúmeras mudanças interconectadas que aconteceram somente nesses últimos 25 anos de virada do século 20 para o 21. Como por exemplo a crise migratória nos EUA e Europa, o uso intenso da internet móvel no celular, os primeiros casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o forte aumento das mudanças climáticas e os desastres e acidentes ambientais causados pelo aquecimento global, etc. Tudo isso impacta na nossa percepção, produzindo um medo da mudança, e na forma como as pessoas reagem e interpretam o que diz respeito à política e religião, já que são as duas áreas que mais influenciam nossas vidas no dia a dia. Lembremos do medo do Apocalipse na virada dos 2000.

Na “internet” todo mundo é alguém, seja aquele que vê, comenta, publica ou compartilha; e com o crescimento da Inteligência Artificial (IA), tudo pode ser verdade, ou não. Esse efeito produz nas pessoas a sensação de pertencerem a uma comunidade de sentidos, mesmo sem sequer sair de casa. Entre os evangélicos brasileiros, esses locais fazem circular fluxos contemporâneos que envolvem ideias, pessoas e coisas que circulam em várias direções e carregam consigo uma imaginação religiosa.

No Brasil, tal imaginário é inspirado principalmente pelos EUA e Israel, por meio da incorporação de bandeiras e teologias de outros países com maioria judaico-cristã que tem lideranças religiosas de extrema direita. Rejeitando assim, a nossa cultura nacional afro-indígena.

Comentários na LIVE da posse de Donald Trump, transmitida pelo Youtube.

Dos bilionários presentes na posse, queria chamar atenção para Elon Musk, que tem inúmeros dados sobre populações ao redor do mundo. Ele é o homem mais rico do mundo e oficialmente ministro do governo dos EUA no Departamento de Eficiência Governamental, cuja função é dar conselhos para o novo presidente americano quando o assunto for o corte de gastos públicos.

Musk nasceu filho de um minerador de esmeraldas na África do Sul e, com esse dinheiro, fundou algumas empresas em diferentes áreas, cujo alcance é mundial e você certamente conhece: 1) o banco digital PayPal, a fabricante de carros elétricos Tesla, 2) a empresa de satélites e lançamentos espaciais SpaceX, que tem contratos com a Nasa e planos futuros de colonizar Marte; 3) a startup de túneis Boring Company; 4) a rede social Twitter/X e a 5) Neuralink, companhia de implantes cerebrais.

No meio desse extenso domínio, o mais curioso disso tudo é que: enquanto parte dos evangélicos no Brasil e mundo celebram o sucesso e a entrada dele (Musk) no governo dos EUA, por meio da Neuralink ele implanta dispositivos (chips) no crânio de pessoas. Numa leitura teológica evangélica esse acontecimento está alinhado a uma profecia descrita na bíblia se referindo ao Anti-Cristo:

Ela obrigou a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos a aceitarem certa estampa de marca na mão direita ou na testa, a fim de que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser que apresentasse a tal marca.

Apocalipse 13: 16-17

Segundo a empresa, o objetivo do chip é monitorar e estimular a atividade cerebral com o objetivo de permitir que pessoas com paralisia controlem celulares ou computadores usando o pensamento. Esse chip já foi aplicado em três pessoas nos últimos anos, apresentando falhas – como a soltura dos fios no cérebro do usuário com paralisia.

CNN Brasil, 2025

Pouco ainda se sabe sobre os efeitos físicos e psicológicos dessa tecnologia, e há quase nenhum controle sobre os procedimentos realizados e dados que podem ser acessados pela empresa, que é alvo de investigação por possíveis violações da Lei de Bem-Estar Animal norte-americana e por procedimentos abusivos e ilegais em animais.

O bilionário se declara um “cristão cultural” que segundo ele, é “aquele que aceita os princípios cristãos, mas não tem uma fé pessoal e práticas religiosas”. Durante o seu discurso na cerimonia, Elon Musk sentiu-se à vontade para fazer um sinal usada por líderes fascistas na Alemanha e na Itália durante a Segunda Guerra, momento em que judeus, negros e outras minorias foram largamente perseguidos e assassinados.

Então me pergunto, porquê os evangélicos brasileiros estão seguindo líderes que querem destruir a cultura nacional de cada país e criar um tipo único de sociedade dependente de redes virtuais, sem sequer olhar para o próximo nas ruas? Será que esse grupo tem tido acesso a tais informações, como violações de direitos e a existência da Neuralink, mesmo sendo manipuladas pelos donos das tecnologias?

Durante a escrita desse texto, inúmeras ações foram realizadas pelo governo Trump nos primeiros dias, incluindo a deportação de brasileiros evangélicos, defensores sólidos do presidente Trump. Então me pergunto: qual será a reação desses fieis diante de um cenário nítido de desamor e violência contra o próximo, sob a desculpa do nacionalismo americano?

Folha/UOL, jan, 2025.

Parte dos evangélicos no Brasil está pregando e vivendo um cristianismo punitivista, intolerante e violento, que é espalhado pelas redes sociais e televisão. Nesse movimento, estão acabando com a coisa mais bonita que há no planeta: a diversidade humana. Enquanto isso, negam o fato de que somos únicos porque somos diferentes e tornam a diferença cultural um ´´problema´´ a ser resolvido com políticas que limitam as liberdades de existência de grupos e pessoas que não aderem às suas crenças, tornando-os menos dignos de existir e eliminando seus direitos.

Em breve, na segunda parte deste texto, irei explorar os resultados da minha dissertação de mestrado em Antropologia para explicar de que forma a existência de um judaísmo imaginário na mentalidade dos evangélicos Latino Americanos está relacionada a uma ideia de retorno de Cristo, bem como o papel do Brasil enquanto nação nesse projeto.


A verdade é que esse mundo já é do devorador, então se você tem ouvidos para ouvir, ouça o que os oprimidos tem a dizer. É preciso transformar a cultura do ódio ao diferente e o amor é o único caminho possível, junto à imaginação radical negra.


Fontes:
https://unherd.com/newsroom/elon-musk-im-a-cultural-christian/
https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/empresa-de-musk-esta-autorizada-a-testar-chips-cerebrais-em-humanos-nos-eua/
https://bibliaportugues.com/
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/veja-as-principais-acoes-assinadas-por-trump-no-primeiro-dia-de-mandato/
https://www.cnbc.com/2024/02/29/musks-neuralink-brain-implant-company-cited-by-fda-over-animal-lab-issues.html
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/01/medo-de-ir-a-igreja-e-tensao-nos-grupos-de-whatsapp-a-mudanca-de-rotina-dos-imigrantes-brasileiros-nos-eua.shtml


Thayane Fernandes – É recifense, poeta, dj, bacharel em Ciências Sociais, mestra e doutoranda em Antropologia pela UFPE. Foi pesquisadora visitante no Canadá e Estados Unidos através de prêmios de pesquisa no exterior, passando também pelo Oriente Médio. É Antropóloga pública, feminista negra e consultora de Geledés – Instituto da Mulher Negra. Se dedica a investigar principalmente Cristianismo evangélico, conservadorismo, raça, arte, autodeterminação e imaginação cultural radical.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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