Eu, TitubaBruxa Negra de Salem

O romance ficcional de Maryse Condé, escritora guadalupense, celebra mulheres negras de todas as épocas e lugares. Tituba, uma negra escravizada, nascida em Barbados, foi julgada pelos Tribunais de Salem por bruxaria, que também é praticada por brancos que contam suas histórias em livros e peças teatrais, mas a ignoram. “Salem era isso. Uma comunidade onde saqueavam, enganavam e roubavam, se escondendo atrás do manto de Deus”.

Minha mãe e meu pai criavam porcos e galinhas nas encostas do Matatu, em Salvador, onde morávamos. Isso era um costume na cidade da Bahia há algumas décadas. Os porcos e galinhas eram utilizados para diversas finalidades e feitiços. Fôssemos ou não fôssemos do dendê. As Titubas brasileiras são milhões e, como elefantas, exercem poderes que possuem e os que não sabem que possuem. Os poderes medicinais das plantas, da fauna e do acesso aos invisíveis fizeram com que as nossas Mães e Pais de Santo não temessem o curandeirismo/charlatanismo do atual Código Penal.

Nascida de um estupro, realizou o aborto do primeiro filho: “choro porque a minha pedra da lua está enterrada no fundo da água”. Com o suicídio do pai, conversava com os seus mortos-vivos, a mãe e a avó, as ancestrais invisíveis, Abena e Man Ya. Enquanto isso, o seu amado, Indien, sentenciava: “O dever de um escravo é sobreviver”. Condé é notável pela sua viagem extemporânea pelos temas do colonialismo, feminismo, racismo, inquisição, sexualidade, religiosidade, entre outros.

As nossas mazelas não são tão ou mais duras e belas quanto as dos intelectuais e cineastas brancos, ricos e brasileiros que vivem de repetições de obras feitas. Aqui ainda brilham histórias e prêmios dos que ainda exercem poderes puritanos: “Onde estava satanás? Não se escondia ele nas capas dos juízes? Não falava pela voz de juristas e homens de igreja? Tituba é a nossa alegria triste renovada, nossas Carolinas de Jesus, Marias Firminas dos Reis e Mãe Branca de Omolu.

O livro é vencedor do New Academy Prize 2018. As provas dos testemunhos de Tituba estão na Corte do Condado de Essex, Salem, Massachusetts. Apesar de ter sido roubado por Heródoto, deus grego da medicina, Imotep, o deus egípcio da medicina, alcançou as nossas rezadeiras e benzedeiras, mostrando as contradições das faculdades de medicina no Brasil. Condé recria, magnificamente com sua poesia proseada, um contexto em que a mulher negra resiste à negação da sua existência!

Nas longínquas plantações do Caribe, os Marrons se aproximam das nossas raízes resistentes da quilombagem e vão nos ensinando a entender um Brasil que chama pejorativamente de identitarismo as nossas raízes mais profundas. Enquanto isso, entre macaxeiras, samambaias e mafumeiras, vamos resistindo com dureza e afeto aos nossos temporais. Inspirando a luta daquilo que ouso chamar a verdadeira revolução brasileira: o protagonismo das lutas das mulheres Titubas negras no Brasil.


Sergio São Bernardo – Advogado e Professor da UNEB


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