Um brasileiro ‘kilapeiro’

Aos 10 anos de idade, Lázaro Ramos começou a sua carreira no teatro e dois anos depois parou de actuar. Na altura, o menino achou que já não poderia ser actor profi ssional, como era o seu sonho, porque na cidade em que nasceu, Bahia, havia pouca actividade na área de teatro, a televisão era praticamente inexistente e o cinema enfrentava uma grande crise. Em 1994, depois de a situação ter-se alterado ligeiramente, integrou-se no grupo teatral “Bando de Teatro Olodum”, o que não foi condicionante para que fi zesse uma formação em Medicina Laboratorial, tornando-se num Técnico de Patologia. Nesta fase, para Lázaro Ramos o teatro era apenas lazer, reservado para o turno da noite, porque não acreditava que podia viver da profi ssão.

Os exames médicos que efectuava durante o dia num humilde hospital, na Bahia, eram a principal ocupação e fonte de subsistência. No Bando de Teatro Olodum (grupo conhecido pelo fi lme e série televisiva Ó Pai ó), Lázaro fez mais de 20 peças, desde clássicos de Shakespeare até a espectáculos criados pelo grupo, como o Ó Pai ó. Algum tempo depois, o actor decidiu expandir-se e especializou-se em outras duas áreas: produção e realização. Já em 2000, um realizador da cidade de Pernambuco chamou-o para representar no espectáculo “A máquina”, onde contracenou com estrelas como Wagner Moura e Vladimir Brichta. Fruto da sua boa apresentação, Lázaro Ramos atingia assim o estrelato e o seu trabalho passou a ser conhecido além da Bahia, em todo o Brasil.

“O teatro ia bem, eu era elogiado pela crítica, mas, fi nanceiramente, não acontecia”, frisou. Depois do espectáculo feito na cidade de Pernambuco, Lázaro partiu para o Rio de Janeiro, isto ainda em 2000, considerado o “Ano da Retomada, que marca o fi m da época em que praticamente não havia cinema no país. Concorreu a vagas para sete fi lmes, poderia ter participado em todos, mas só foi possível trabalhar em cinco por falta de tempo. Assim, no ano seguinte, gravou as obras “Madame Satã”, “O homem que copiava”, “Carandiru”, “O homem do ano” e “As três Marias”. Todas tiveram uma boa repercursão na carreira do actor, principalmente a primeira que rendeu a Lázaro 23 prémios e chegou a vários festivais de cinema internacionais. Foi por causa do “Madame Satã” que o cineasta angolano Zezé Gamboa convidou-o a fazer o fi lme que estreou há pouco mais de uma semana no Cineplace. Acompanhado do realizador angolano, que também testemunhou a conversa com esta revista, Lázaro nem se lembrava de quando terá sido convidado por Zezé Gamboa.

Recorreu a este para avivar a memória, mostrando que existe um óptimo relacionamento entre os dois. No fi m concordaram que o convite tinha sido feito em 2007, quatro anos depois do sucesso do actor brasileiro em “Madame Satã”. “Você me convidou, mas eu achei que o fi lme nunca fosse sair”, ironizou o esposo da também actriz Taís Araújo. A Televisão chegou tarde à vida de Ramos. Não acreditava que houvesse espaço para um actor como ele vindo do teatro e do cinema, nem que encontraria personagens com a qualidade que queria.

Durante algum tempo, Lázaro diz ter tido o que chamou de “preconceito para com o mundo dos ecrãs”, sobretudo depois de ter visto alguns personagens de telenovelas que não lhe despertaram qualquer interesse. Paulatinamente, surgiram seriados em que acreditou, como “Sexo Frágil” e “A grande Família”, em que participou. Ainda em 2007, quando interpretou “Foguinho” na telenovela Cobras & Lagartos viu a sua relação com a televisão aprofundar-se muito mais. Até agora o actor fez apenas quatro novelas, 20 fi lmes e cerca de 30 peças teatrais.

MAS O QUE É UM KILAPY?!

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Desde o começo, “O grande Kilapy” pareceu ser uma obra promissora para Lázaro Ramos. Tudo começou quando recebeu uma ligação de Zezé Gamboa a convidá-lo para um projecto sem data de realização prevista. O argumento do fi lme foi o mais interessante, bem como o facto de fazer um trabalho que envolvesse cidadãos de nacionalidades diferentes, mas unidos pela língua.

Outra questão interessante para Lázaro é que, apesar de o personagem fazer parte do “imaginário angolano”, é um anti-herói, coisa que desperta o fascínio do actor, que já tinha interpretado Foguinho (Cobras & Lagartos) e o André (Insensato Coração), personagens que ele diz ser impossível descrever como vilão ou como herói.

No fi lme “O grande Kilapy”, Lázaro interpreta uma história baseada em factos reais, porque o personagem que representa existiu. Ao contrário do habitual, o realizador não permitiu que o actor tivesse acesso a fotografi as, entrevistas ou outros documentos do verdadeiro Joãozinho para que não o tentasse imitar. Todo o contacto que teve com a realidade do personagem foi a partir de livros sobre o periodo histórico que Angola vivia na altura.

INTERPRETAR UM ANGOLANO NÃO É FÁCIL
O actor assumiu que não conhecia muito da história da colonização de Angola antes do filme e que poucos ecos chegam ao seu país sobre o assunto. As difi culdades de interpretar uma personagem angolana não foram poucas; a primeira foi a percepção dos termos próprios de Angola, como o que consta no título do fi lme, “Kilapy”. «Para mim esta palavra não signifi cava nada, tal como a expressão “bisgas-me o cabedal todo”, disse.

Assim, com a ajuda da sua equipa, tomou como primeiro passo para vencer os obstáculos, a tradução do seu argumento. Na sua representação, Lázaro optou por não tentar imitar o sotaque angolano; a dicção era a sua segunda difi culdade. No fi lme, ele apresenta uma linguaguem híbrida (sotaque brasileiro, termos angolanos).

Em Portugal, o fi lme foi bem recebido e Lázaro ganhou o prémio de Melhor Actor. Neste país, tal como em Angola, o actor sentiu uma identifi cação das pessoas que assistiam ao fi lme (nas exibições de estreia) com aquilo que era contado na história. Em Toronto e em Londres, a obra cinematográfi ca também foi bem aceite. Agora, o que resta é esperar que no Brasil o resultado seja o mesmo.

DE ANGOLA NUNCA ME VOU ESQUECER DO…

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Lázaro Ramos leva de Angola alguns aspectos marcantes. O histórico foi o primeiro a ser mencionado pelo impacto que teve ao estar num país onde a história da colonização ainda é muito viva. O actor também leva consigo aspectos culturais como o semba, a kizomba e o kuduro que têm musicalidades que se identifi ca com as do Brasil.

“Andar na rua e ver pessoas que são parecidas com um primo ou um tio meu é algo muito marcante”, frisou. Ter tido um esclarecimento da “África mítica” que reside na cabeça da maior parte dos homens brasileiros de raça negra, como o Candomblé da Bahia e o de Angola que se diferem nos seus ecos, principalmente por já ter ido a Moçambique e a outros países africanos e ter percebido que cada área do nosso continente apresenta as suas particularidades, é outra grande lembrança que leva do nosso país. “No Brasil, ainda existem pessoas que pensam que África é um país e não um continente”, disse.

EM 7 SEMANAS DE GRAVAÇÕES…
A equipa com que Lázaro trabalhou estava muito bem formada, afi rmou o actor e, por nenhum momento, sentiu-se no ambiente exótico de cinema. Tal deve-se também ao facto de no Brasil já ter feito todo o tipo de fi lmes desde os que custaram 500 mil dólares, aos que custaram quatro milhões por exemplo. A diversidade já é hábito. Avaliar o cinema angolano é-lhe muito difícil, por o nosso país apresentar um cinema muito amplo no que toca a características.

No primeiro mês de gravações, a saudade de casa bateu a porta. Lázaro convivia com pessoas novas e que, apesar de desconhecidas, o receberam muito bem, o que facilitou o seu trabalho e fez fl uir a concepção, principalmente com Pedro Hossi que é o seu melhor amigo do trabalho feito neste fi lme. Em cada fi lme, Lázaro cria um novo melhor amigo, resultante da parceria nas fi lmagens, da generosidade. O actor fi cou apenas três dias em Luanda na primeira vez que esteve no nosso país. A viagem foi confusa, por ter sido a primeira vez a vir para África, o que lhe criava grandes espectativas desde então.

O que mais marcou foi o semba que não hesita em se arriscar a dançar. Teve a oportunidade de conhecer o semba numa viagem em que o anfitrião era Paulo Flores. A caminho da casa de Paulo Flores, Ramos passou por uma estradanão sinalizada, o que foi uma experiência única e o deixou impressionado. Mas a compreensão entre as pessoas de Angola que se acabavam de levantar de uma luta muito forte foi o que ficou no coração do actor.

O facto de Angola ter recebido bem o Foguinho deveu-se, segundo o actor, ao factor identificação. Por ser um personagem que apesar de todos os erros cometidos, estava apenas a lutar pela sua sobrevivência, por um redescobrimento e até um renascimento, para além de ser muito cómico. O actor mencionou outro momento muito emocionante que o personagem Foguinho lhe proporcionou que foi quando a apresentadora Regina Casé esteve em Luanda e levou para o Brasil, no seu programa, o recado de um menino que vive num dos musseques da capital de Angola. Para Angola, não sabe quando vai voltar, mas Lázaro espera que seja em breve e que fique mais tempo.

Por estrear, tem o filme Vendedor de Passados, para além de outros dois. Em Angola, a TV GLOBO vai repetir a telenovela Cobras & Lagartos. Para os mais pequenos estão reservados os desenhos animados Avião Vermelho. A realização é o seu objectivo. Por agora, realizou duas peças teatrais que estão em cartaz no Brasil. E de novelas, talvez no próximo ano. “Medicina Laboratorial é para nunca mais; de bom ficaram as relações humanas”, disse.

Sinopse Do Filme “O grande Kilapy”

“O Grande Kilapy” é a história de Joãozinho, um bom malandro angolano, que burlou o Estado português, durante o período colonial. A história baseada em factos reais conta a vida glamourosa do “bon vivant” Joãozinho, filho de um funcionário do banco de Portugal, em Luanda. Nos anos sessenta, ele é um estudante de engenharia no Instituto Superior Técnico e joga basquetebol no Sporting Clube de Portugal.

Apesar de se viverem momentos de grande agitação, nomeadamente no meio estudantil da capital com a PIDE vigiando os movimentos suspeitos -, Joãozinho leva uma vida em grande estilo, destacando-se pelos fatos de bom corte; e os carros de alta cilindrada, e pelas belas mulheres que o acompanham. Os estudos, esses, ficam para segundo plano.

A generosidade de Joãozinho é tanta que chega mesmo a dividir o dinheiro que arrebanha de forma fraudulenta aos amigos para fugirem do país, escaparem das prisões e manter os revoltosos que lutam pela independência de Angola.

Acaba preso por desfalque, mas sai nos braços do povo, como herói nacional, quando as portas das prisões se abrem, libertando a todos, a maioria deles combatentes da agora vitoriosa luta pela independência de Angola, que culminou com a revolução de Abril de 1974, em Portugal.

 

Fonte: O País 

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