Um legislativo pela vida das mulheres no Brasil

A reivindicação pela saúde das mulheres não se restringe à oposição de enfermidades, pois inclui saúde física, psíquica, sexual, reprodutiva, direito à vida digna e livre de todas as formas de violência

Por Ingrid Leão e Sandra Lia Bazzo Barwinski, do Justificando 

geralt/Pixabay.com

Na última semana, diversas atividades foram organizadas para posicionar a proteção e defesa do direito à saúde, especialmente sob a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos que marcam de forma diferenciada a cidadania das pessoas do gênero feminino. Isto por conta de o 28 de maio ser o Dia Internacional de Ação pela Saúde da Mulher desde 1987 (The International Day of Action for Women’s Health)

Geralmente, a saúde da mulher é lembrada pelo risco de morte em decorrência de algumas enfermidades que afetam mama, úteros e ovários ou ainda pela necessidade de uma gestação saudável. Nesse conjunto de ideias iniciais que associam o feminino a órgãos e funções, defender direitos seria buscar campanhas de afirmação da saúde como tradução de um direito de toda a mulher estar livre de doenças. E assim, de acordo com essa visão de saúde, restaria ao parlamento aprovar leis de orçamento para saúde e atos de fiscalização da gestão realizada pelo Poder Executivo, quem seria o responsável pela rede de atendimento, qualidade nos serviços e oferta de assistência.

A reivindicação pela saúde não se restringe à oposição de enfermidades. A mobilização pelo dia 28 de maio diz que as mulheres precisam de bem mais para ter saúde física, psíquica, sexual e reprodutiva: a integralidade e interdependência da saúde ao direito à vida digna e livre de todas as formas de violência, praticada em espaços públicos ou privados, por agentes estatais ou em relações intrafamiliares.

Assim, pode-se buscar compreender os sentidos de realizar no Brasil a segunda edição do Festival pela Vida das Mulheres, de 28 de maio a 2 de junho de 2019, como um espaço para intervenções artísticas, culturais e divulgação de informações sobre saúde das mulheres a partir da perspectiva da cidadania e da Justiça Reprodutiva. Ou na Argentina, onde além de debates e exposições, o movimento de mulheres se organiza para marcar o dia 28 de maio com a apresentação de uma nova proposição legislativa visando a aprovação de lei assegurando a interrupção voluntária da gestação ou como menciona o projeto: Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE).

A noção de saúde sexual e reprodutiva traz na linguagem jurídica o conteúdo para os deveres do Estado para com a cidadania de mulheres e homens. Isto é, os interesses estatais não se sobrepõem à reprodução e à sexualidade tal qual já vimos em políticas de controle de natalidade. A conexão com formas de violência e a diversidade com que a cidadania é exercida a partir do direito à saúde em um contexto de desigualdades sociais vem com a noção de Justiça Reprodutiva. Essa perspectiva é apresentada por Loretta Ross como um enquadramento necessário para aproximar a saúde reprodutiva da justiça social, o que inclui as condições de exercício da maternidade. Em síntese, Justiça Reprodutiva, expressão cunhada pela Asian Communities for Reproductive Justice (ACRJ), refere-se ao “completo bem-estar físico, mental, espiritual, político, social e econômico de mulheres e meninas, baseado na plena realização e proteção dos direitos humanos das mulheres” [1].

Os compromissos com a saúde sexual e reprodutiva estão vinculados aos marcos das conferências internacionais da década de 1990 que ainda circulam pouco entre os profissionais do Direito. A Declaração da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim em 1995, enfatiza na diferença entre sexualidade e reprodução. A Declaração afirma como direitos sexuais os direitos relacionados ao exercício e à expressão da sexualidade de forma livre e sem discriminações, que envolve o direito de escolha sobre ter ou não relações sexuais, o direito de expressar livremente a orientação sexual, o direito à relação sexual independente da reprodução e o direito ao sexo seguro, com o objetivo de prevenir gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Ao passo que o Programa de Ação do Cairo (1994) reconhece que os direitos reprodutivos são direitos humanos e compreendem a decisão de ter ou não filhos, o número de filhos e em que momento ter, de forma autônoma, sem discriminação, violência ou coerção. Além disso, trata-se do acesso a informações, métodos, meios e técnicas conceptivas e contraceptivas.

Por isso, a defesa das vidas das mulheres a partir da cidadania sexual e reprodutiva não permite fugir das reivindicações sobre aborto seguro de forma honesta e próxima da experiência das mulheres. Isto porque é na experiência da interrupção voluntária da gestação que tanto a autonomia das mulheres é posta à prova como a negação desse direito lhe submete a condições que se traduzem em tortura e morte. A defesa do direito à saúde atrelado à possibilidade jurídica de não ser punida pela disposição do seu próprio corpo convive com a possibilidade social de empurrar mulheres para situações degradantes, cujo máximo impacto é o óbito.

Os alertas sobre a negação do abortamento estão na garantia desse como um direito humano. No Brasil, o direito de acessar os serviços de abortamento se limitam a três hipóteses não puníveis: (i) Risco de morte para a gestante (art. 128, I, do Código Penal); (ii) gravidez resultante de violência sexual (art. 128, II, do Código Penal); e (ii) feto com anencefalia (decisão do STF na ADPF 54, 2012). Os casos de aborto espontâneo ou acidental, que não são criminalizados pelo ordenamento jurídico brasileiro, também demandam assistência médica e hospitalar.

O direito ao abortamento com respaldo legal repercute imediatamente no dever de assistência médica e à saúde sexual e reprodutiva, o que implica na proibição da recusa de atendimento dos serviços de saúde àquela mulher que deseja interromper a gravidez decorrente de estupro, por exemplo. Além da recusa criar barreiras para o exercício desse direito significa impor riscos à saúde física e psicológica/moral da mulher, que pode se configurar violência física e violência institucional, é uma forma de tratamento desumano e degradante.

Apesar dos permissivos legais ao aborto no Brasil, a cobertura desses serviços de assistência em saúde é restrita aos grandes centros urbanos e insuficiente, possibilitando concluir que as mulheres têm o direito ao aborto legal negado, por ação ou omissão estatal. Os obstáculos, de toda a ordem, à realização da interrupção da gestação de forma segura, adequada e acessível, compelem as mulheres para práticas inseguras, atraindo a clandestinidade, a violência e a morbimortalidade. Uma mulher que esteja em uma cidade mais bem equipada terá melhor acesso que outras, ou ainda mulheres com mais acesso à informação sobre seus direitos e informação sobre os serviços de saúde também, o que traz à tona um quadro de desigualdade entre as próprias mulheres com direito ao abortamento seguro.

As diferentes formas de negação de direitos, de acordo com o Comitê CEDAW da ONU, são formas de discriminação contra as mulheres e violam diretamente o princípio da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana. Constituem óbice ao bem-estar da sociedade porque dificultam o desenvolvimento das potencialidades das mulheres. Por isso, além das declarações internacionais sobre saúde sexual e reprodutiva, hoje se conhece a incorporação desses conceitos na interpretação dos tratados internacionais de direitos humanos, como se pode ver das recomendações gerais dos comitês de tratados da ONU. A interpretação não se restringe ao órgão de monitoramento da Convenção da Mulher. Mais recentemente, o Comitê DESC (Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) elaborou um documento que interpreta o artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC) de acordo com a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos. Trata-se da Observação Geral n. 22 (2016). Dezesseis anos antes, o próprio Comitê DESC já interpretou que “[…] A satisfação do direito à saúde por parte da mulher requer que se suprimam todas as barreiras que se opõem ao acesso da mulher aos serviços de saúde, educação e informação, em particular na esfera da saúde sexual e reprodutiva […]”, de acordo com o item 21 da Observação Geral n.14.

Para este maio de 2019, muitas são as razões para direcionar o alerta sobre saúde da mulher ao Poder Legislativo. A principal está em um conjunto de propostas que buscam criminalizar qualquer hipótese de abortamento, inclusive àquelas permitidas desde 1940. A formulação jurídica legislativa se dá por meio de modificação do artigo 5º da Constituição Federal, incidindo sobre o direito à vida para inserir a proteção do embrião com o fim de limitar os direitos das mulheres. Trata-se da PEC 29/15, sob relatoria da Senadora Juíza Selma Arruda (PSL-MT), que “altera a Constituição Federal para acrescentar no art. 5º, a explicitação inequívoca “da inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”.

O pano de fundo é desafiador para a saúde da mulher, apesar de discursos de direitos humanos que permeiam essa proposta fundamentar a modificação textual no Pacto de São José da Costa Rica. Apesar dessa referência no discurso de propostas contrárias ao abortamento, esse tratado de direitos humanos já foi interpretado em 2012 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in Vitro) Vs. Costa Rica, após fazer inclusive considerações históricas sobre a formulação do termo por ocasião da aprovação da Convenção Americana [2]:

 

A expressão “toda pessoa” é utilizada em vários artigos da Convenção Americana e da Declaração Americana. Ao analisar todos estes artigos não é factível argumentar que um embrião seja titular e exerça os direitos consagrados em cada um destes artigos. Além disso, tendo em consideração o já argumentado no sentido que a concepção somente ocorre dentro do corpo da mulher (pars. 186 e 187 supra), pode se concluir em relação ao artigo 4.1 da Convenção que o objeto direto de proteção é, fundamentalmente, a mulher grávida, em vista de que a defesa do não nascido se realiza essencialmente através da proteção da mulher, como se observa no artigo 15.3.a) do Protocolo de San Salvador, que obriga os Estados Parte a “conceder atendimento e ajuda especiais à mãe antes e durante um período razoável depois do parto”, e do artigo VII da Declaração Americana, que consagra o direito de uma mulher em estado de gravidez a proteção, cuidados e ajudas especiais.

 

Portanto, a Corte conclui que a interpretação histórica e sistemática dos antecedentes existentes no Sistema Interamericano confirma que não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião.

Dessa maneira, o argumento que se agarra no Pacto de São José da Costa Rica se configura mais como um recurso discursivo do que a aplicação de direitos humanos a favor das mulheres e da igualdade com base na interpretação internacional de direitos humanos.

PEC 29/2015 está fora de pauta desde o início do mês de maio, diante de divergências entre os integrantes da própria bancada. Apesar disso, o argumento permanece entre os parlamentares na tentativa de recusar o compromisso do Estado brasileiro com o direito à saúde das mulheres sob o pretexto de proteção da vida desde a concepção ou sob alegação de que a promoção da igualdade de gênero se configura alinhamento ideológico.

Na Câmara Federal outros projetos, aparentemente mais ingênuos, pretendem instituir o dia nacional de conscientização antiaborto (PL 5617/2016), de autoria do Deputado Federal Pr. Marco Feliciano (PSC/SP), ou o que dispõe sobre a prevenção e conscientização dos riscos e consequências relacionados ao aborto (PL 4642/2016), de autoria do Deputado Federal Flavinho (PSB/SP), seguem na mesma toada de supressão de direitos.

Além das proposituras sobre aborto, outras atividades legislativas afetam a informação em saúde na medida em que visam barrar a educação sexual, informações que também estão atreladas aos direitos sexuais e reprodutivos e constituem a medida mais eficaz na prevenção do abuso sexual, no planejamento da vida reprodutiva e inclusive na prevenção de abortos. Acrescenta-se que esses projetos de lei se opondo à informação em saúde por meio da chave “ideologia de gênero” também buscam impactar diretamente um grupo populacional, que parte da sociedade busca manter excluída e discriminar: as travestis e mulheres e homens trans, pessoas não percebidas pelas políticas de saúde e amplamente discriminada no exercício de direitos e reconhecimento.

Enquanto isso, outras experiências do legislativo municipal e estadual se organizam contra o direito à saúde sexual e reprodutiva, contra a Justiça Reprodutiva. No Paraná, foi aprovado, em 21 de maio, o PL 303/2017, que institui 15 de maio como o dia estadual de conscientização contra o aborto, tendo por objetivo estimular e sensibilizar a população sobre os direitos do nascituro, o direito à vida e implicações dos abortos ilegais; contribuir para a redução dos abortos clandestinos; ampliar o nível de resolutividade direcionadas à saúde da gestante; divulgar preceitos da vida humana contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Na justificação, dados controversos sem indicação da fonte e uma intrigante associação na escolha do dia 15 de maio tendo como referência ao Dia Internacional das Famílias, que foi instituído pelas Nações Unidas, para conscientizar sobre questões relativas às famílias e promover o conhecimento dos processos sociais, econômicos e demográficos que as afetam, dentre os quais estão os desafios e riscos da maternidade como a gravidez e partos seguros, o planejamento familiar, a violência, e a importância da educação sexual e reprodutiva. Um contra senso na medida em que a justificação do referido PL 303/2017 subverte os propósitos proclamados pela ONU e não contribui para a reduzir o “risco de doença e de outros agravos” (art. 196, da Constituição Federal).

Em síntese um chamado para atenção à saúde das mulheres sob a perspectiva dos direitos humanos é o reforço de deveres de todos os poderes e instituições públicas, porém é no legislativo que a negação de compromissos com direitos ou a redução de direitos já reconhecidos para as mulheres estão em marcha. Mesmo sem aprovação, seus efeitos nocivos repercutem sobre a proteção cotidiana da saúde de meninas e mulheres, de forma diferenciada mulheres pobres e negras, de acordo com o local de moradia, orientação sexual e identidade de gênero.

Ingrid Leão, Doutora e Mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, advogada e educadora feminista, integra o Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM-Brasil)

Sandra Lia Bazzo Barwinski, Mestra em Direito pela UNINTER, advogada, co-coordenadora nacional do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM-Brasil).

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