“Nada não está tão ruim que não possa piorar”. A frase dita no último dia 27 pelo presidente da República durante solenidade que marcou os mil dias de seu governo pode ser considerada histórica. Isso porque foi das raríssimas vezes em que o presidente falou algo aparentemente verdadeiro e que, levando em consideração o que tem sido seu governo e sua personalidade, soou como um “lapso de lucidez”.
A frase é também uma boa síntese dos mais de mil dias de horror da gestão de Jair Bolsonaro. De fato, instalou-se no Brasil um governo em que as expectativas são sempre de que tudo vai piorar. Não há absolutamente nada que dê ao menos a impressão de que algo no país funcione, que irá melhorar ou de que algum dos inúmeros problemas nacionais pode ao menos ser encaminhado. É uma mistura fantástica de incompetência, insanidade, crueldade e corrupção.
Em um jantar nos Estados Unidos realizado em 2019, o presidente da República disse que em seu governo seria necessário “desconstruir” muita coisa no Brasil antes que algo pudesse ser construído. Depois de mil dias de governo percebe-se que o presidente, seguindo o padrão que lhe é habitual, não disse a verdade, ao menos não completamente. Este governo não é tão somente de destruição, mas de lesão, de sofrimento e de dor. Matar não é suficiente: é preciso torturar, humilhar e levar à loucura.
É também um governo corrupto, e não apenas no sentido usual do termo. É corrupto no sentido filosófico, já que inverte a finalidade das instituições, fazendo com que operem de forma contrária aos propósitos que declaradamente motivaram sua criação. Exemplos disso são os ministérios.
O Ministério da Economia se torna o fiador da miséria e da pobreza; o Ministério da Justiça promove perseguição e vingança; o Ministério do Meio Ambiente lidera a destruição da natureza; o Ministério da Saúde serve para espalhar a doença e assim por diante.
Os efeitos da decadência civilizatória representada pelo governo brasileiro se apresentam nos mais diversos setores da vida nacional. Na economia, além dos índices de desemprego, de desalento e do aumento progressivo da miséria, o país se vê à mercê de pessoas que, tendo o dever de agir, assistem com cinismo a milhões de pessoas passando fome, comendo restos de carcaças, revirando latas de lixo e sufocando por causa de uma doença para qual já existe vacina.
Na política, as reformas propostas pelo governo e seus aliados têm o claro propósito de facilitar a captura do Estado por interesses privados, seja de grupos econômicos, seja de organizações criminosas. Neste momento, a reforma administrativa é a ponta de lança deste movimento que visa a fragilização dos mecanismo de controle social do Estado brasileiro.
Mas talvez o pior de todos os efeitos destes mil dias de trevas sejam os produzidos na alma dos brasileiros. Desassossego, desesperança, tristeza e ódio são os sentimentos que talvez melhor descrevam este estado suicidário, racista e assassino no qual estamos todos metidos. O governo brasileiro não inventou, mas deu sustentação, potencializou e conferiu legitimidade a uma cultura de morte e cinismo que se disseminou na sociedade brasileira.
Sair deste pesadelo que tem custado milhares de vidas e interditado o futuro irá exigir uma grande recusa dirigida aos propagadores do ódio e aos lesadores que integram ou apoiam o governo, suas ideias e suas ações.
Para isso, instituições como esta Folha tem que assumir a responsabilidade que lhe cabe como o jornal mais lido do país e decidir se quer participar da construção de um país digno ou continuar investindo na criação de polêmicas artificiais em nome de uma suposta “pluralidade”.
Racismo e falsificação histórica nada têm a ver com postura democrática. Quem abre espaço para este tipo de indigência intelectual e moral, que prestigia irresponsáveis e fanfarrões, colabora, ainda que indiretamente, para que esse pesadelo jamais tenha fim.