Eles são de diferentes ideologias, de diferentes partidos. Trazem percursos de vida diversos e assumiram, ao longo dos anos, diferentes cargos. Mas, diante da ameaça de um governo de extrema-direita que coloca em risco a democracia, decidiram se unir para denunciar as violações e o desmonte do sistema de direitos fundamentais no Brasil.
Nesta sexta-feira, todos aqueles que já ocuparam o cargo de chefe da pasta de Direitos Humanos no Brasil desde o final da ditadura lançam uma iniciativa conjunta. O projeto conta com nomes como o de Paulo Sérgio Pinheiro, secretário no governo de Fernando Henrique Cardoso, Paulo Vannuchi, ministro sob o governo Lula, ou Rogério Sottili, que liderou a pasta no governo de Dilma Rousseff.
Também fazem parte da iniciativa José Gregório, Gilberto Saboia, Maria do Rosário, Ideli Salvatti e outros.
Em entrevista à coluna, Paulo Sérgio Pinheiro deixou claro que apenas uma frente ampla entre diferentes forças políticas e movimentos populares vai derrotar a extrema-direita e evitar um golpe de estado.
“Não podemos negar conversa com todos no arco político. Só fica fora a extrema-direita. Na história mundial, não foi de outra maneira. Nossos vizinhos tiveram a coragem de fazer essas frentes amplíssimas”, defendeu. “Sem isso, a extrema-direita vai prevalecer”, alertou.
Para ele, a existência do governo atual é a própria ameaça à consolidação democrática. “Esse governo tem desmontado aquilo que levamos 30 anos para construir. O bolsonarismo é, na verdade, um autoritarismo com elementos neofascistas”, disse.
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade – Por qual motivo essa iniciativa está sendo lançada?
Paulo Sérgio Pinheiro – É uma tomada de consciência conjunta contra as políticas contrárias à democracia e aos direitos humanos que o governo de extrema-direita está colocando em prática desde a posse do presidente Bolsonaro.
É um simbolismo muito forte. Demonstra que, diante de um governo de extrema-direita e de ameaças, aqueles partidos têm de ficar juntos, ainda que tivessem diferenças de opinião ou de políticas. E reafirmar nosso compromisso com a democracia e os direitos humanos de uma forma explícita e demonstrando unidade.
Primeiro, há um retrocesso, que é essa ameaça que paira desde a campanha presidencial. E que se aprofundou durante os mil dias do governo. Foi uma escalada contra a promoção e garantias dos direitos humanos. Aqueles que exerceram aquela responsabilidade em diferentes governos na pasta de direitos humanos nos juntamos para fazer um alerta e dizer que, entre nós, a união está consolidada, contra qualquer ameaça autoritária e de desmonte da estrutura da democrática.
Vocês são de partidos e tendências diferentes. O que os une?
O que nos une é que os direitos humanos não têm partido. Não são programas de cada governo, mas de estado, propostos pelos governos com diferentes partidos e tendências. Isso, na realidade, foi uma das grandes conquistas da consolidação democrática. Essa capacidade de construirmos uma política de estado de direitos humanos, que tem um denominador comum que são os instrumentos internacionais, basicamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração americana e os pactos de direitos civis e políticos, além do pacto de direitos sociais e econômicos.
A união se faz em torno do denominador comum, que são os princípios do direito internacional. Todos os governos, para sermos honestos, foram nessa direção. José Sarney, em sua primeira ida à Assembleia Geral da ONU, assinou a Convenção da Tortura e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que a ditadura tinha se recusado a assinar.
Essa temporada de união nos direitos humanos foi aberta antes mesmo da Constituição de 1988. Fernando Collor de Melo, também na ONU, afirmou que a soberania nacional não pode ser um escudo protetor das violações de direitos humanos no Brasil. E, logo depois, ele emite ordem para todos os postos da diplomacia brasileira no exterior para receberem as grandes organizações de direitos humanos, como Anistia Internacional, Human Rights Watch e outras.
Esses governos também abriram a temporada de ratificações dos tratados internacionais. No final dos anos 90, quase todas elas estavam ratificadas. Mas nada disso foi fácil. Foram lutas no plenário. Temos alguns senadores que estiveram à frente dessa luta, como Severo Gomes, Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy.
Qual foi a consequência disso nos governos seguintes?
No governo de Itamar Franco, o Brasil esteve presente na conferência de direitos humanos de 1993 e que vai marcar a evolução do debate. Ali ficou estabelecida a universalidade dos direitos humanos e sua indivisibilidade. No governo de Fernando Henrique Cardoso, como consequência da conferência de 1993, começou a ser preparado o Plano Nacional de Direitos Humanos, lançado em 1996 e em cooperação com a sociedade civil. Depois tivemos mais dois planos, com uma consulta ampla durante o governo Lula.
Durante os anos de Dilma Rousseff, o foco foi no combate ao racismo, defesa das mulheres, contra trabalho escravo. A realização máxima foi a criação da Comissão Nacional da Verdade. Antes da aprovação, fizemos visitas à Câmara dos Deputados e ao Senado. Quando estivemos com Sarney, que presidia o Senado, ele me disse no ouvido: aqui não vai ter problema, você não se preocupe.
Hoje, qual é a maior ameaça aos direitos humanos no Brasil?
É a existência de um governo de extrema-direita que tem como inimigo a sociedade civil. Nenhum dos governos democráticos no Brasil tratou as organizações da sociedade civil como inimigas. A relação é sempre a do contraditório. O estado é aquele que tem o monopólio da violência, mas também aquele que implementa as políticas, que se traduzem em direitos humanos. O estado é o repressor e aquele que pode dar a maior garantia à existência dos direitos humanos.
A diferença é que, nos governos anteriores no Brasil, só avançamos. A sociedade civil só avançou. Mas, no governo de extrema-direita, isso não existe. A sociedade civil é o inimigo. Os inimigos são os pobres, os negros, as crianças, os movimentos de orientação sexual diversificada, as mulheres. Salvo no governo nazista, não há um governo de extrema-direita com uma pauta tão antifeminista como esse governo Bolsonaro.
A existência desse governo, portanto, é a própria ameaça. E ameaça à consolidação democrática. A cada semana, Bolsonaro ameaça que vai fazer um golpe. Chegou perto no dia 7 de setembro e depois pede desculpas. Isso é o pior que pode haver para uma política de direitos humanos, com um governo que ataca a nossa organização civil e política. As ameaças ao STF só têm igual na ditadura, que cassou três ministros da corte. Esse governo tem desmontado aquilo que levamos 30 anos para construir.
A escalada começou a ocorrer no governo golpista de Michel Temer, que extinguiu o ministério de Direitos Humanos e propôs o congelamento de 20 anos para investimentos sociais e desmontou operacionalidade.
O desmonte das estruturas de direitos humanos, como o sr. citou, é uma das marcas do governo Bolsonaro. O que isso significou na prática?
O desmonte é feito em diferentes dimensões. Uma delas é a narrativa do presidente e de seus ministros. Eu mesmo fui investigado no dossiê antifascista. O presidente, por sua vez, desmancha a grandeza que é o Palácio do Alvorada, com aquelas participações para seus apoiadores em um curral na porta do local. Aquilo virou um programa de auditório onde o presidente testa os horrores que vai dizer em discursos. O bolsonarismo é, na verdade, um autoritarismo com elementos neofascistas.
Outra dimensão é a ministra Damares Alves. Ela tentou esvaziar a Comissão de Desaparecidos, da Anistia e todos os conselhos nos quais participavam atores da sociedade civil, além do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Isso também ocorreu com o Comitê contra a Tortura. A cereja no bolo foi a criação, por Damares, de um grupo de trabalho fantasma, pois é secreto, para fazer a revisão da política nacional de direitos humanos. Isso é para enterrar de vez a política de estado de direitos humanos.
Ou seja, o desmonte não é só verbal, mas também na prática e com leis que estão sendo aprovadas. Marco temporal, lei antiterrorismo e outras são exemplos.
O Brasil passou a ser alvo de constantes ataques no cenário internacional, inclusive pela ONU, com condenações sobre as violações aos direitos humanos. Como o sr. avalia essa situação do país?
Isso é o que mais me deprime. Nesses últimos 25 anos, me dediquei a vários mandatos internacionais. O que ocorria em todos esses lugares? O Brasil era o interlocutor válido. Durante esses 30 anos, fomos alguém que todos os países que queriam trabalhar em defesa dos direitos humanos, isso apesar do racismo, violência policial e situação dos indígenas. Apesar disso, desde o governo Sarney, não praticou o negacionismo. O pior que pode existir é negar que existem os problemas.
O Brasil era um governo que outros países podiam contar. Os países democratas que queriam promover os direitos humanos sabiam que podiam contar com o Brasil. No debate sobre orientação sexual, no qual o Brasil sempre liderou e era estimado por muitos países que não iam na mesma direção. Tudo isso foi por água abaixo com o governo de extrema-direita.
E qual a repercussão disso?
É a deterioração do Brasil. Ninguém quer mais conversar com o país. Apenas para criticar. O Brasil não pesa mais no G-20, não é interlocutor do G7. Isso terminou. O que ocorre na área de direitos humanos repercute. Somos tratados como os palhaços do mundo na imprensa internacional. O Brasil perdeu o que tinha conquistado, que era ser interlocutor inclusive de todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Esses horrores nos direitos humanos refletem na visão internacional do Brasil. Vivo em Genebra e em Nova Iorque uma sensação de depressão profunda sobre o Brasil.
Levar a situação brasileira para o Tribunal Penal Internacional é caminho válido?
É uma das vias internacionais, em especial quando se constatam crimes contra a humanidade cometidos por um governo de extrema-direita. Várias queixas já foram apresentadas, inclusive pela Comissão Arns. Recebemos informação da secretaria da procuradoria do TPI que a denúncia seria examinada. Não quer dizer que está sendo investigada. Mas não foi descartada.
Todas essas vias são válidas. Mas eu não espero a intervenção de outros estados democráticos. Não é isso que vai mudar as coisas no país.
Então qual o caminho?
O que vai mudar é a mobilização da sociedade e a capacidade das forças brasileiras de ter uma frente ampla. Isso não significa unificar partidos ou candidaturas. Mas contra o projeto de um golpe autoritário. Uma frente conjunta de denúncias.
A sociedade civil pode convocar as forças políticas para sair dessa divisão e se unirem. Também os grandes movimentos populares, inclusive sindicatos. Depois, no segundo turno, cada um terá sua ação. Mas a atual conversa é uma ação conjunta de denúncia do que está sendo arquitetado.
Não podemos aguentar um outro 7 de setembro. Precisamos de uma convergência das diferentes forças políticas e movimentos populares. Não é um programa de governo. Isso é depois. Essa frente ampla tem que dar conta dessa ameaça, que é um golpe de estado pelo atual governo.
Uma união é impossível e nem é saudável. Mas a convergência sim. Não podemos negar conversa com todos no arco político. Só fica fora a extrema-direita. Essa não entra. Todos os demais têm de entrar. Na história mundial, não foi de outra maneira. Nossos vizinhos tiveram a coragem de fazer essas frentes amplíssimas.
Ninguém pode cobrar o outro pelo que fez ou deixou de fazer. Temos de suspender isso e fechar o mínimo de acordo. Sem isso, a extrema-direita vai prevalecer.
Qual deve ser a resposta da comunidade internacional diante desse desmonte no Brasil?
É evidente que as manifestações da opinião pública e da imprensa internacional foram muito válidas na ditadura (1964-1985) e estão sendo válidas neste momento. É positivo criar dificuldades para ratificar o acordo comercial entre Mercosul e UE. Claro que também é muito positivo ver partidos ecologistas avançando em eleições, como na Alemanha. Isso vai chamar a atenção do agronegócio e dos empresários que apoiam a atual política brasileira. Mas isso tudo vai ocorrer de forma indireta. E não como uma ameaça ou pronunciamentos.
Já nos órgãos internacionais, foi importante a medida cautelar que o Comitê de Direitos Humanos deu ao presidente Lula. Esperamos que os órgãos dos tratados façam uma revisão importante do Brasil, além dos relatores da ONU. O que interessa, no fundo, é o interesse das vítimas. E, no Brasil, a situação dessas vítimas é desesperadora, seja pela vacina, racismo ou pobreza. Contamos com os organismos internacionais para que acompanhem o Brasil. A sociedade civil no Brasil está cumprindo seu papel. Esperamos que a comunidade internacional não nos frustre, nessa hora de imensa necessidade que é estarmos a um governo de extrema-direita e visando um golpe de estado autoritário.