Como a pandemia escancarou a desigualdade no acesso à água e na mobilidade

Estudos apresentados no Fórum SP 21 ajudam a radiografar o quadro urbano de São Paulo

Ao revelar pesquisas e estudos inéditos, o Fórum SP 21, promovido pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e outras quatro instituições para avaliar o Plano Diretor e a política urbana de São Paulo, contribuiu para radiografar o quadro urbano de São Paulo.

Durante duas semanas, foram apresentados 167 trabalhos em 29 sessões temáticas, propostos por mais de 250 pesquisadores e ativistas urbanos. Em sete mesas de conclusão, os relatores de cada sessão sintetizaram as principais abordagens, apresentaram as discordâncias e os consensos que surgiram e as propostas para repensar as políticas públicas da cidade.

Os estudos trataram de temas como emergência climática, áreas verdes, patrimônio cultural, habitação, produção imobiliária, mobilidade, uso do solo, financiamento e governança. Uma infinidade de abordagens, que debateremos nas próximas colunas.

Iniciando essa reflexão, vou me deter em duas pesquisas que mostraram como a pandemia, combinada com a profunda desigualdade urbana de São Paulo, afetou de maneira muito mais forte os setores vulneráveis da população, revelando uma outra faceta da espoliação urbana, termo cunhado pelo professor Lúcio Kowarick.

O quadro requer intervenções concretas do poder público, já que quase nada foi feito após 18 meses de pandemia. Isso pode parecer uma obviedade, já tratada na coluna inúmeras vezes desde março de 2020. Mas esses estudos recentes dão maior concretude às análises já realizadas, quantificando a questões.

Trabalho de pesquisa e extensão realizado por uma equipe da Universidade Federal do ABC, em parceria com movimentos sociais, apresentado pela professora Luciana Ferrara, mostrou que o acesso à água, um direito básico, é um problema não resolvido em São Paulo, prejudicando a prevenção à Covid-19 nos assentamentos precários onde existem 530 mil domicílios e vivem cerca de 2 milhões de paulistanos.

Segundo o IBGE e o Sistema Nacional de Informações do Saneamento (SNIS) 99,3% dos domicílios de São Paulo têm rede de água encanada. O estudo mostrou outra realidade. Após entrevistar 591 moradores em assentamentos precários, revelou que 69% têm algum problema de acesso à água.

A resposta de um morador do Jardim Celeste, localizado no São Savério (Subprefeitura do Ipiranga, área consolidada da zona sudeste) resume bem a questão “tem torneira, água não”.

Rede de água não garante o líquido na torneira devido à intermitência do abastecimento. Dos 591 entrevistados, 152 apontaram intermitência durante o dia e 186 durante a noite, quando a Sabesp reduz a pressão para minimizar as perdas.

O problema surge devido ao grande número de ligações alternativas (o chamado “gato”) e à forte ausência de caixas-d’água. Das 385 famílias que indicaram algum tipo de problemas de abastecimento, 154 não têm caixa-d’água e as torneiras ficam secas quando a Sabesp reduz a pressão.

Como lavar as mãos, recomendação básica de prevenção à Covid, ou fazer higiene pessoal, requisito de saúde pública, quando não tem água na torneira? “Emprestar dos vizinhos” foi a resposta de 160 dos 549 entrevistados. “Não fico um dia sem trabalhar por causa disso, porque ‘nós resolve’ pegando água de madrugada em um balde e botando para dentro de casa”, disse um dos entrevistados.

Acionada pelo Ministério Público, a Sabesp informou ter distribuído 4.161 caixas-d’água na capital (0,8% dos domicílios em assentamentos precários). Mas o enfrentamento do problema não se limita a isso. A instalação da caixa-d’água requer recursos, assistência técnica e uma estrutura que a maioria das casas não tem.

A questão do acesso à água está diretamente ligada ao problema da moradia precária, que precisa ser enfrentado com um programa específico de melhorias habitacionais, prioridade que ficou evidente no fórum.

Já a pesquisa realizada por pesquisadores do Cebrap e apresentada por Daniela Costanzo, sobre “a mobilidade urbana com o advento da pandemia” trouxe dados quantitativos mostrando que a pandemia afetou drasticamente os setores vulneráveis.

O levantamento foi realizado em uma amostra representativa da população de São Paulo, em um período em que a taxa de transmissão da Covid-19 estava elevada, entre os meses de fevereiro e março de 2021.

Enquanto 42% das pessoas enquadradas na classe de renda A estavam em home-office e, portanto, podiam respeitar o isolamento, essa porcentagem caía para 9% nas classes D e E. Nesses segmentos, 63% dos trabalhadores eram obrigados a se deslocar até o local de trabalho, sendo que 45% todos os dias, expondo-se ao contágio.

Os efeitos da pandemia no emprego foram tênues entre os mais privilegiados e atingiram fortemente aos demais segmentos: na classe A, apenas 3% ficou desempregado, porcentagem que sobe para 22% na classe B, 23% na classe C e 18% nas classes D e E. O desemprego teve também um traço de gênero: 26% das mulheres estavam desempregadas, contra 13% dos homens.

Se os mais pobres foram obrigados a se deslocar, a pesquisa mostrou que o transporte coletivo passou a ser considerado o mais perigoso, no que diz respeito ao contágio. Nesse aspecto, as notas atribuídas foram: 2,4 no transporte coletivo contra 8,8 no automóvel e motos, 7,7 a pé e 7,0 na bicicleta.

Em consequência, ocorreu uma reversão em relação ao uso do transporte coletivo pelos que têm a opção de utilizar o carro. E também um maior apoio à implantação de uma estrutura cicloviária.

O uso do transporte coletivo, incluindo o esporádico, caiu de 72% antes da pandemia para 53% nos ônibus e de 67% para 46% no metrô e trem, provavelmente em decorrência do risco de contágio ter se tornado a principal razão para a escolha do modal para 39% da população (antes da pandemia era 5%).

Mas essa queda foi muito mais acentuada para as classes A e B. As classes C, D e E, sem opção, continuam a usar o transporte coletivo (72% para a classe C e 64% para as classes D e E).

A redução da demanda para o transporte coletivo, que permanecerá após a pandemia, pois para 16% o risco de contagio continuará a prevalecer na escolha do modal. Ela agravará a crise de financiamento do setor, o que poderá levar sua desorganização, prejudicando os mais pobres, que não têm a opção do carro.

Os demais efeitos negativos desse modal (trânsito, poluição, emissão de CO2, etc.) também irão ocorrer sem nada for feito para reverter essa tendência.

O Fórum SP 21 mostrou que o enfrentamento da crise sanitária requer uma estratégia do poder público para os problemas urbanos. É urgente o governo realizar intervenções estruturais para equacionar problemas urbanos intimamente relacionados com a saúde pública, em especial, a segurança hídrica, o saneamento, a mobilidade e a habitação.

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