Uma boneca com cabelo igual ao meu

Deroní Mendes – Devo te dizer filha, que sempre sonhei em dar para você os brinquedos que nunca tive. A minha infância não foi fácil. Tínhamos muitos deveres desde muito cedo: Levar comida na roça para meu pai, tios e irmãos, lavar a louça; ajudar a buscar lenha; juntar casca do coco de babaçu; Alimentar porcos e galinha, cuidar da irmã mais nova. e só depois, brincar.

Enviado por Deroní Mendes via Guest Post para o Portal Geledés

Praticamente, não tivemos brinquedos industrializados. No entanto, tínhamos um mundo para explorar: Brincar de casinha, pega-pega, queimada, bandeirinha, pescar na lagoa, subir em arvores. Era tudo uma festa. Quando fui prá cidade, aos 11 anos, logo comecei a trabalhar de babá. Ainda era muito jovem, uma criança cuidando de outras crianças. Queria brincar de boneca. Mais que isso, me sentia injustiçada, queria ter bonecas e brincar como outras crianças na minha idade.

Inconformada, e na inocência, prometi que minha filha ou filho teria muitos brinquedos. Brinquedos e tempo para brincar mais.

No entanto, o mundo, a vida adulta me mostrou que que não há problema em não ter os brinquedos que se deseja. E quando você nasceu, entendi e aprendi outros valores e outros desafios de ser mãe negra. Mais que isso, o desafio e obstáculo de ser mãe de uma menina negra.

Muito mais que brinquedos, quero que você seja feliz, e tenha capacidade de lidar com esse mundo que as vezes se mostra perverso para nós negros. Um mundo que infelizmente, é muito cruel desde muito cedo com meninas negras. Sim, meninas negras. Você é uma menina negra, e desde cedo, com gestos e palavras tento lhe mostrar que não há nada de errado com você, com a cor da sua pelo, e o jeito do seu cabelo.

Algumas pessoas não entendem a minha frustração e indignação quando posto em meu perfil no Facebook, mensagens sobre racismo, contra o racismo. Não entendem, quão frustrante e cruel e triste, ver você não se identificando com as bonecas nas lojas de brinquedos.

Não sabem, não entendem, ou preferem se fazer indiferentes ao fato de que há inúmeras, centenas de bonecas com cabelos preto lisos, loiros, ruivo, e quase nenhuma boneca negra.

Quando encontramos uma boneca negra, elas são absurdamente caras, e quase sempre não tem cabelo. Quando tem cabelo, os cabelos delas são lisos. Não se trata apenas de uma boneca. Um brinquedo. E sim de um brinquedo com a a criança se identifica.

Você tem 4 bonecas, duas brancas e duas negras. Não te ensino a escolher entre elas, mas é muito evidente o quanto você se identifica bem mais com as duas negras, que aliás são bem mais velhas que as brancas. Uma tem dois anos e a outra 3 anos, a mesma idade sua.

Suas bonecas negras também não tem cabelos, e talvez por isso, você me pediu outro dia que queria uma boneca com cabelo igual ao seu: “você compa tá mim uma?” fiz que sim com a cabeça , e você: “Igau o meu, mãe?”. Isso me doeu profundamente, pois sabia que seria impossível cumprir esta promessa. Você parece ter entendido, e quis que eu confirmasse com palavras: “fala mamãe? Igau meu? …é mãe? igau meu? fala mamãe:Igau meu?”. “Sim, filha, igual seu.” disse que te daria no dia das crianças.
Mais de uma semana após o dia das crianças, ainda procuro o seu presente. Encontrei uma boneca negra na internet cabelos cacheados que aproximam um pouco do seu, porém, é muito cara. Acho que ficará para o Natal.

Espero que esta realidade mude, filha. Espero que logo, seja possível comprar bonecas negras com cabelos cacheados e com preços acessíveis.

Não é só por você, mas por milhares de crianças negras de família de baixa renda que ganham “barbies” ou outras bonecas, no Natal, no aniversário, no dia das crianças. Não porque seus pais a acham bonita, ou acreditam que seus filhos se identificam com elas, mas porque são as que cabem no bolso deles.

+ sobre o tema

AWID 2016 Última chamada: as inscrições serão encerradas no dia 28 de Agosto

Há um enorme interesse em participar do 13° Fórum...

Coronel Helena dos Santos Reis: a PM que ela quer

A coronel Helena dos Santos Reis, 45 anos, toma...

Mulheres, negras e perigosas

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais...

Luiza Brunet: “Escolhi a violência doméstica como bandeira da minha vida”

Dois anos após denunciar por agressão o ex-companheiro, o...

para lembrar

Número de mulheres que adotam sobrenome do marido caiu 24% desde 2002

Por Manoela Alcântara, do Metrópoles O número de mulheres que...

Mãe Stella lança canal no YouTube

Mãe Stella de Oxóssi, 92 anos, imortal da Academia...
spot_imgspot_img

Prêmio Faz Diferença 2024: os finalistas na categoria Diversidade

Liderança feminina, Ana Fontes é a Chair do W20 Brasil, grupo oficial de engajamento do G20 em favor das mulheres. Desde 2017, quando a Austrália sediou...

Dona Ivone Lara, senhora da canção, é celebrada na passagem dos seus 104 anos

No próximo dia 13 comemora-se o Dia Nacional da Mulher Sambista, data consagrada ao nascimento da assistente social, cantora e compositora Yvonne Lara da Costa, nome...

Mulheres recebem 20% a menos que homens no Brasil

As mulheres brasileiras receberam salários, em média, 20,9% menores do que os homens em 2024 em mais de 53 mil estabelecimentos pesquisados com 100...
-+=