Revista Vogue
O mundo esperou 93 anos para ver uma segunda mulher levantar a estatueta do Oscar de Melhor Direção na noite do último domingo (25). A cineasta chinesa Chloé Zhao com sua figura calma, segura e detentora de muita força interior, foi a grande vencedora do maior prêmio da indústria cinematográfica norte-americana concedido pela Academia de Artes e Ciências de Hollywood deste ano.
Seu filme, Nomadland, uma ode a liberdade, a individualidade e a solidão, estrelado pela brilhante Francis McDormand, também vencedora da estatueta de Mellhor Atriz – a terceira de sua carreira, – ainda abocanhou o prêmio maior de “Melhor Filme”. Como um todo, a premiação do Oscar, termômetro mundial de todas as vertentes cinematográficas, apontou para uma maior diversidade de gênero, raça e regiões geográficas antes nunca cogitadas a participarem daquela grande festa. Temos o que comemorar? Provavelmente a resposta está bem aquém da tão sonhada equidade total. Porém, mais importante do que esperar que a indústria do cinema, tanto a de lá quanto a de cá, acorde para equilibrar essa balança, é exaltar nossas rainhas e suas obras daqui.
A cineasta brasileira Carmen Luz, assim como Chloé Zhao, é calma, segura e detentora de muita, mas muita força interior. Por trás de sua simplicidade elegante, se esconde uma intelectual detentora de uma mente brilhante e uma das maiores e mais completas artistas do Brasil. Em 1994, Carmen criou a Cia. Étnica de Dança (@ciaetnica), projeto social ambicioso de formação artística na dança contemporânea e no teatro, originado na comunidade do Andaraí, Rio de Janeiro.
Desde então a Cia Étnica de Dança reconhecidamente se tornou um dos mais bem sucedidos e prestigiados projetos sociais de cultura e arte desse país. Por lá, já passaram cerca de 600 crianças e adolescentes e a companhia já contou com, aproximadamente, 200 apresentações, para uma média de 90 mil pessoas, no Brasil e, também, no exterior. Há 27 anos a companhia vem se dedicando a pesquisa e criação de obras artísticas que refletem a experiência afrodescendente em diferentes linguagens artísticas no mundo contemporâneo.
O projeto da escola de dança fundado por Carmen foi mantido graças ao patrocínio da Petrobras, que só chegou no ano 2001. Esse apoio viabilizou uma infraestrutura dos sonhos para seus alunos que passaram, então, a ter acesso a computadores com internet, biblioteca e aulas de inglês. Isso sem contar nas salas de ensaios climatizadas e bem equipadas. Situação bem diferente do início do projeto, quando as aulas e ensaios eram realizados num velho clube abandonado na comunidade do Andaraí – o Clube Santo Agostinho, onde as aulas aconteciam sob chão áspero, sem linóleo, e, ainda assim, nenhum aluno jamais sofreu uma só lesão.
E não foi só isso. Ao longo de sua trajetória, Carmen e sua companhia, encararam momentos ainda mais difíceis. Certa vez, o mesmo Clube Santo Agostinho que os abrigava resolveu expulsar o grupo de lá. E para que as aulas não parassem, a única alternativa viável naquele momento foi usar uma sala do Hospital do Andaraí para ensaiar. Mas esses tempos ficaram para trás.
Perseverança e foco
Força, foco e perseverança nunca faltaram a essa bailarina e coreógrafa autodidata, mestra em Arte e Cultura pela UERJ. Carmem nasceu no Rio de Janeiro, numa família extremamente pobre, que não teve condições econômicas de investir em sua já precoce aptidão pela dança. Durante a infância tampouco teve acesso a um projeto social como o que ela mesma idealizou quando se tornara adulta. Apesar disso, ela nunca se intimidou perante as dificuldades e trilhou o seu próprio caminho de sucesso no elitista e eurocentrado mundo dos “Pliéts” e “Pas de bourrées”.
Corpos negros no ballet clássico nunca foram bem recebidos. A ditadura por um padrão estético norte-europeu, longilíneo e “delicado” fez com que muitos talentos “não brancos” deixassem de seguir carreiras promissoras. Os poucos que insistiram e tinham condições de financiar as aulas ainda ouviam rechaços dos professores ou ainda tinham que lidar com o desprezo dos mesmos. Pouquíssimos foram os bailarinos negros ou fora dos “padrões estabelecidos” que conseguiram avançar em um círculo tão fechado e adverso.
Recém falecido por conta da COVID-19, Ismael Ivo, bailarino, coreógrafo e ex-diretor do “Ballet da Cidade” do Teatro Municipal de São Paulo – e dono de uma das mais bem sucedidas trajetórias de um artista brasileiro no exterior – assim como Carmen, foi um dos poucos artistas negros que conseguiu furar o bloqueio classista da dança. E se hoje temos uma Ingrid Silva brilhando como primeira bailarina negra do “Dance Theater of Harlem”, em New York, muito se deve a iniciativa de artistas pioneiras e visionárias como Carmen Luz que abriu caminhos e fomentou um sem-número de talentos periféricos.
Fato é que Carmen, ainda hoje, realiza com sua companhia uma série de espetáculos, performances, intervenções e projetos sociais em favelas e comunidades carentes. E ao longo de sua trajetória vitoriosa se desenvolveu em diferentes funções. Foi diretora artística do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, diretora do Centro Cultural José Bonifácio, professora de cinema na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, lecionou dança na Faculdade Angel Vianna, foi curadora do Encontro de Cinema Negro Zozimo Bubul e júri do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Seu percurso artístico, pedagógico e multidisciplinar é potente e pujante, assim como todo o desenvolvimento de sua pesquisa ao refletir sobre gestos, movimentos e narrativas que envolvem os corpos negros.
Dançando no cinema
Mas não foi só nos palcos que todo esse talento e visão se manifestaram. Carmen Luz sempre pensou muito além e sempre transitou entre diferentes linguagens artísticas, dentre elas o cinema. Ela escreve, dirige e produz documentários e filmes de videoarte e videodanças e se tornou uma referência nesse gênero. E há exatos 8 anos realizou seu primeiro documentário de longa-metragem intitulado Um Filme de Dança. O filme é uma das maiores obras-primas do cinema documentário no Brasil.
Nele, Carmen, com seu rigor estético e olhar técnico apurado, lança uma poética mirada sobre trajetórias de corpos negros em diferentes vertentes da dança que celebram suas existências e resistências. Do Ballet Folclórico da Bahia e Mercedes Batista, passando por Rubens Barbot e Cia Aérea de Dança até Firmino Pitanga, grandes nomes ofuscados pelo apagamento do racismo estrutural brilham em toda a sua plenitude artística em movimentos que narram suas próprias trajetórias.
Exibido no circuito fechado de festivais do Brasil e do exterior durante o seu lançamento, Um Filme de Dança agora poderá ser visto e revisto em formato on-line somente até o dia 30/04 na Mostra 10 Olhares – uma retrospectiva parcial de curtas e longas autorais de diferentes gêneros produzidos no Brasil no início da década dos anos 2000 – idealizada pelo cineasta e crítico de cinema, Eduardo Valente.
Aproveitando esse ensejo conversei com Carmen sobre seus processos, o retorno desse grande filme, o cinema, projetos futuros e, é claro, sua visão de mundo e de futuro próximo.
VOGUE – Seu documentário, Um Filme de Dança, foi realizado em 2013, dois anos antes da “primavera feminista”. Naquela época um filme sobre a cartografia dos corpos negros na dança realizado por uma diretora preta não era nada “bem-visto” por uma certa “intelligentsia” do cinema independente e autoral brasileiro. Quais foram os desafios enfrentados com o lançamento desse filme naquela época? E como é ter esse mesmo filme selecionado, em 2021, na Mostra 10olhares – que faz um recorte bem específico de filmes independentes brasileiros da primeira década dos anos 2000?
Carmen Luz: O filme foi lançado no nicho da dança. O objetivo naquele momento era dar a boa notícia que o filme traz, a diversidade dos corpos, pensamentos, técnicas dos artistas negros na dança. O filme rodou mostras, festivais e eventos no Brasil, na Alemanha e nos EUA. Estar na mostra é um reconhecimento da força do filme, mas pra mim é, sobretudo, um enterro digno que podemos dar aqueles artistas, mestres de dança que já não estão mais entre nós e ao mesmo tempo um olhar merecido aos artistas que continuam lutando pra existir no mundo tão racializado da dança.
VOGUE – Um Filme de Dança tem várias locações em Nova York, São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Salvador. Como foi viabilizar essa produção naquela época?
Carmen Luz: Viabilizei o filme com recursos de um edital e com meu próprio dinheiro. Foi bem duro. Era meu primeiro filme longo, com uma logística complexa e eu mesma o produzi, pois o produtor não acreditou no projeto e saiu logo no início. Resolvi bancar e seguir em frente.
VOGUE – A desigualdade de gênero e raça na fomentação do cinema te paralisa ou te impulsiona?
Carmen Luz: Bem, por um lado, coletivo, Sabrina, eu diria que estamos aqui, você, eu e tantas outras mulheres, negras e não-negras, justamente porque as múltiplas formas de desigualdade são incapazes de nos paralisar. É certo que as desigualdades nos atrapalham, mas o que essas dimensões perversas – próprias do capitalismo e da supremacia branca que desde sempre se esparrama pelo cinema -, vem encontrando pelo caminho é a nossa capacidade de nos organizar, de construir alianças afetivas e estratégicas, de tomar consciência de nós mesmas e de nosso papel no mundo maior.
No plano individual, claro que minhas obras discutem as questões históricas, sociais e artísticas que demarcam a minha existência, tento fazer isso com poesia. Acho que de fato, o que me impulsiona é uma vontade de que as pessoas se conheçam e possam experimentar uma abertura para viver junto e, pra mim, o cinema pode sempre dar muitas pistas de aberturas possíveis para a experiência do encontro acontecer.
VOGUE – No seu filme a seguinte frase é dita por um dos bailarinos: “eu não sou ‘Afro’. Eu sou um negro. Um negro diaspórico”. O projeto colonial fez com que nos colocassem nesse lugar do genérico, inclusive nós mesmos. A “dança afro” é um desses lugares genéricos destinados aos corpos pretos na dança. E no filme você busca desconstruir esse estereótipo apontando todos os lugares possíveis para a ocupação desses mesmos corpos. Dito isso, como você enxerga essas “gavetas coloniais” nas quais ainda tentam aprisionar o fazer artístico de pessoas negras no Brasil?
Carmen Luz: Rapidamente eu diria que é um atraso, um desperdício próprio de uma sociedade com extrema dificuldade em olhar para si mesma, que se especializou em jogar talentos na lata de lixo ou no colo das companhias europeias e norte-americanas. Eu vejo essas “gavetas coloniais” – para usar os teus termos – como um longo e bem-sucedido projeto educacional ainda em curso. Há uma dramaturgia colonial naturalizada, fossilizada, supremacista, cujos materiais ensinam a todas as pessoas que as negras, as indígenas e as brancas pertencem a determinados lugares e que lá devem permanecer, ou seja, estou falando de poder, de subjugação, de fantasia, de sanha em matar e desejo de morrer. O sistema de arte como parte de um sistema maior espelha esse projeto.
Claro que há alguma mobilidade social, econômica, pois estamos falando de sistemas complexos que envolvem pessoas e um sem-número de variáveis, mas que insistem em ser pessoas que não se encaixam e outros que não aderem completamente a esse projeto. Há pessoas que vão atrás da sua própria história, da história da sua comunidade, dialogam com a sua ancestralidade, encontram espelhos e se miram neles para animar seus próprios desejos e se jogarem para um futuro fora das “gavetas”. Mercedes Baptista, Ismael Ivo, Rosangela Silvestre e muitos outros são exemplos.
VOGUE – Você diria que a sua obra no cinema é uma extensão do seu trabalho como artista em outras áreas?
Carmen Luz: Meu trabalho no cinema não é uma extensão. É só outro modo de eu expressar minhas inquietudes. Tenho curiosidade diante das formas artísticas e procuro os meios que melhor possam responder ao que mais me aguça. Mas, de fato, o que é imprescindível pra mim é o movimento. Sempre o movimento das coisas, do mundo, das pessoas. É assim que minha curiosidade se coloca no meu corpo: em movimento
VOGUE – Em nossas conversas durante o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul e no Festival de Brasília, você me dizia que o cinema é o que te move e não o audiovisual. Pode falar mais um pouco sobre essa diferenciação?
Em mim tem a ver com paixão e educação cinematográfica. Eu aprendi a olhar cinema na televisão, vendo filmes feitos para cinema. O audiovisual é tudo né, aliás é bem grande. Creio que hoje é algo tão grande que inclui, inclusive mercadologicamente, o cinema.
VOGUE – Esse ano perdemos para o COVID-19 um dos maiores nomes da dança mundial, o coreógrafo e bailarino paulistano Ismael Ivo, que levou seu corpo negro para lugares inimagináveis como a direção da “Bienal de Veneza” e do “Teatro Nacional da Alemanha”, na cidade de Weimar, só para citar alguns. Por que é tão difícil para o Brasil aceitar esses corpos em lugares clássicos, contemporâneos e, sobretudo, lugares de poder. Você ainda acha que é necessário esse exílio para ter esse reconhecimento?
Carmen Luz: O Brasil é racista. E não gosta dos seus negros reis, tampouco de suas rainhas. Não entendeu ainda! Para um que cai na terra, nasce cem.
VOGUE – A chinesa Chloé Chao, diretora do filme Nomadland, foi a primeira asiática e a segunda mulher em 93 anos a levar a estatueta de Melhor Direção. Como você avalia essa “mudança” e de que forma você faria um parâmetro com a situação do mercado cinematográfico brasileiro?
Carmen Luz: Outro dia um amigo comentava que as coisas estão tão ruins que a gente anda comemorando qualquer empate como se fosse uma vitória com muitos gols. No nosso caso, os números existentes não nos deixam comemorar, mas sorrir e lutar. O caminho é longo e precisaremos de força, saúde, inteligência, ginga e dinheiro.
VOGUE – Como Carmen Luz enxerga o futuro a médio prazo? Quais são os seus projetos?
Carmen Luz: Estou trabalhando em dois projetos que completam a trilogia que começou com Um Filme de Dança. Estou preocupada com uma linguagem documental entre o ensaio e dança. São filmes coreográficos, digamos assim. Os dois projetos visam contribuir para uma mudança, influenciar o pensamento e prática racista da dança brasileira e o olhar do público.