Uma das convidadas da Flip, escritora nascida em Ruanda virá pela primeira vez ao Brasil
Do O Tempo
Quando viu as primeiras imagens do genocídio que vitimou 800 mil pessoas em Ruanda, seu país natal, em 1994, Scholastique Mukasonga vivia na França há dois anos. Mais de duas décadas tinham se passado desde que ela fora obrigada, aos 18 anos, a abandonar a família em Nyamata, a cerca de 30 quilômetros da capital, Kigali, e cruzar a pé a fronteira com o vizinho Burundi, na madrugada, para evitar ser deportada.
Ao ver as imagens da barbárie contra o seu próprio povo, da etnia tutsi, e intuir o destino dos seus familiares – todos tutsis que tinham sido transferidos para Nyamata pelo governo da etnia hutu, na década de 1960 –, ela compreendeu que não podia deixar a memória deles desaparecer junto às suas vidas. Scholastique precisava escrever.
Nascia, da tragédia, uma das principais vozes da literatura africana contemporânea. A escritora virá ao Brasil pela primeira vez para participar da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, entre os dias 26 e 30 de julho.
Inédita no país, Scholastique terá dois livros lançados por aqui durante a Flip: os romances “Nossa Senhora do Nilo”, que surpreendeu ao vencer o prestigiado Prêmio Renaudot, em 2012, e “A Mulher de Pés Descalços” (2008), em que homenageia a sua mãe, morta no genocídio. Ambos sairão pela Editora Nós.
Ela também já publicou obras de poesia e coletâneas de contos. “Costumo dizer que comecei a escrever por um dever de memória. Decidi fazer isso depois do genocídio da minha família, não poderia agir de outra maneira. Toda a minha família foi exterminada. Já houvera mortes antes, mas não daquele jeito. Sempre digo que minhas primeiras obras são uma mortalha de papel para aqueles que não têm sepultura”, afirma Scholastique, em entrevista por telefone de sua casa, na Normandia.
A perseguição aos tutsis é o tema que atravessa toda sua obra. Seu livro de estreia, “Inyenzi ou les Cafards” (“Inyenzi ou as Baratas”, em tradução livre), lançado em 2006, é um relato autobiográfico em que a autora investiga, a partir da sua experiência de vida, as razões que tornaram possível o genocídio de Ruanda. Apenas na sua Nyamata natal, estão hoje enterradas cerca de 50 mil pessoas, e há um memorial para lembrar as vítimas.
Scholastique explica que não faz uma literatura de testemunho, porque não estava em Ruanda quando tudo aconteceu, mas procura apontar para as suas raízes. “O que eu queria era contar como nasceu o genocídio, como o ódio étnico nasce, cresce e se transforma num genocídio”, diz.
É o caso do romance “Nossa Senhora do Nilo”, cuja história se passa na década de 1960 e gira em torno de um colégio para meninas localizado próximo à fonte do rio Nilo, na cadeia montanhosa na fronteira com o Congo. Perto dali, numa fazenda, vive um homem branco, antropólogo excêntrico, que garante que os tutsis são descendentes de faraós negros. Contudo, a “cota étnica” imposta pelos hutus só permitia que 10% das alunas fossem tutsis. A trama é cheia de perseguições, assassinatos e disputas políticas, espécie de prelúdio para o genocídio de 1994.
Na vida real, Scholastique fez parte da minoria tutsi que teve a possibilidade de estudar. No ano em que abandonou Ruanda, ela frequentava uma escola secundária, e a escolha pelo exílio forçado foi de seus pais. Por falar francês, a jovem teria futuro fora dali, onde a ameaça de morte pairava sobre a família. A língua estrangeira era considerada um “passaporte”.
Ela vê nessa decisão uma certa responsabilidade que lhe foi legada, mas que só compreendeu após o genocídio. Naquele difícil momento, a literatura também serviu como terapia. “A literatura me salvou. Se eu não pudesse escrever teria enlouquecido. Eu sabia que minha família não estava bem, mas era incapaz de imaginar algo daquela magnitude”, conta a escritora. “Ali também entendi que não podia ser a filha ingrata, não podia falhar. Tinha a missão da memória”.
Evento. A Festa Literária Internacional de Paraty acontece de 26 a 30 de julho, e este ano vai homenagear o escritor brasileiro Lima Barreto.
NA EUROPA
Onda conservadora preocupa
A jornalista Joselia Aguiar, curadora da Flip, chegou ao nome de Scholastique ao buscar novas vozes da literatura africana contemporânea. Joselia afirma que a autora chamou a sua atenção ao ser a primeira ruandense a ganhar o Renaudot. Ao ler o romance “Nossa Senhora do Nilo”, a curadora decidiu convidá-la. “Ruanda é um país que faz parte da memória recente de quem acompanha geopolítica por ter sido cenário de um genocídio de tal modo assombroso que é comparado ao próprio Holocausto. A literatura e a trajetória dela, me parece, vão despertar muito interesse”, diz Joselia.
Scholastique levou dez anos para retornar a Ruanda após o genocídio. A autora acompanha de perto a situação do país africano, onde, hoje, as mulheres têm um enorme protagonismo. Elas representam 60% do parlamento ruandense, além de ocupar uma série de ministérios importantes. A escritora explica que, em Ruanda, as mulheres sempre foram reconhecidas e valorizadas socialmente.
Esse papel se fortaleceu após o genocídio, já que a população masculina foi dizimada. “As mulheres foram muito fortes após o genocídio. Elas não podiam ceder ao pânico. Tiveram uma atitude grandiosa”.
Sobre a França, onde vive há 25 anos e hoje vê a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen, liderar a corrida presidencial com um forte discurso anti-imigração, Scholastique confessa que está inquieta. “Vejo o crescimento da intolerância com inquietação. Aqui, não passo um dia sem que alguém observe meu sotaque africano. Há franceses que são muito generosos e uma minoria de extremistas. Espero que possamos votar de forma democrática, e que esse continue sendo o país dos direitos dos homens”.